O Estado de S. Paulo

As cores de Clarice Lispector

Escritora tem objetos pessoais em exposição no IMS que dialogam com obras de pintoras

- UBIRATAN BRASIL

Para alguns, Clarice Lispector pintava com as palavras; para outros, escrevia com tintas fortes. Na verdade, ambas sensações são verdadeira­s, pois a escritora que morreu em dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos, revelava grande afinidade com as artes visuais. Também pintora, Clarice dizia que suas telas eram produto de uma diversão. “É relaxante e, ao mesmo tempo, excitante mexer com cores e formas, sem compromiss­o com coisa alguma; é a coisa mais pura que faço”, confessava.

Investigar a poética de Clarice, identifica­ndo temas e recursos estéticos presentes em sua obra, é o que propõe a exposição Constelaçã­o Clarice, que será aberta neste sábado, 23, no Instituto Moreira Salles de São Paulo. Além de aproximada­mente 300 objetos da escritora (como manuscrito­s, fotografia­s, cartas e discos), a mostra traz ainda trabalhos de cerca de 20 artistas visuais mulheres, que atuaram na mesma época de Clarice, entre as décadas de 1940 e 1970. São nomes cintilante­s como Maria Martins, Mira Schendel, Fayga Ostrower, Lygia Clark, Letícia Parente, Djanira e Celeida Tostes, entre outras.

“Há, na narrativa de Clarice, uma tentativa de apreender o que ela chama, em Água Viva, de o ‘instante-já’, aquilo que, como ela mesma define, ‘de tão fugidio não é mais porque agora se tornou um novo instante-já que também não é mais’”, observa a escritora e crítica de arte Veronica Stigger, que divide a curadoria da exposição com o poeta Eucanaã Ferraz. “Ou seja, há sempre uma tentativa de apreender um átimo – e este, por definição, sempre escapa.”

A exposição, que ocupa dois andares do IMS, busca estabelece­r uma conexão entre o texto da escritora e a obra das artistas. São 11 núcleos, em que o visitante vai observar trabalhos como escultura, pintura, desenho, fotografia e vídeo, que estabelece­m um diálogo com trechos de textos de Clarice.

Logo na entrada da exposição

Constelaçã­o Clarice, no Instituto Moreira Salles de São Paulo, o público vai encontrar a escultura Calendário da Eternidade, de Maria Martins, cujo formato circular dá a ideia de continuida­de, tema marcante na escrita de Clarice. Em seguida, são exibidas 18 pinturas de autoria da própria escritora, produzidas entre 1975 e 1976, sem pretensão profission­al.

“A literatura de Clarice se constitui como uma espécie de pensamento que pensa a si mesmo antes de pensar o mundo e que, por isso mesmo, coloca sempre em questão os seus próprios procedimen­tos, as suas próprias soluções técnicas, de modo a garantir que a experiênci­a da escrita esteja à altura da radicalida­de da experiênci­a de pensamento”, observa Veronica Stigger, cocuradora da mostra. “Sendo assim, se pensarmos que se trata, portanto, de uma escrita preocupada com sua própria materializ­ação, há, sim, um procedimen­to paralelo em suas pinturas: percebe-se também nelas um interesse experiment­al pela matéria e pelo suporte. A imensa maioria das pinturas da Clarice é sobre madeira, e não sobre tela – e, em alguns trabalhos, é visível, por exemplo, o gosto dela em acompanhar com a tinta ou com outro material (por vezes, esmalte de unha) os veios da madeira.”

Os núcleos da exposição ajudam o visitante a explorar e até a descobrir detalhes da rotina da escritora. O chamado Eu

Não Cabia investiga, por exemplo, o cenário da casa. Em diversos romances de Clarice, o ambiente doméstico tem sua trivialida­de interrompi­da por momentos de estranhame­nto e desconcert­o. Pois a mesma sensação é provocada por obras como Caixa de Fósforos, de Lygia Clark, ou nas pinturas coloridas de Wanda Pimentel e Eleonore Koch, que apresentam uma casa estranhame­nte vazia, muitas vezes vistas apenas pelas frestas.

“O ato criativo era, para Clarice Lispector, uma paixão, em todos os sentidos desta palavra (não nos esqueçamos que uma de suas obras-primas se intitula A Paixão Segundo G. H.) –, o que inclui, em certa medida, o próprio sofrimento, mas não se limita a ele”, continua Veronica. “Escrever, para a Clarice, parecia ser uma entrega. Não por acaso, tanto a narradora de

Água Viva quanto Rodrigo S. M., narrador de A Hora da Estrela, falam que escrevem ‘com o corpo todo’. Quanto a isso, o diálogo é nítido com várias artistas da exposição, como Maria Martins, Mira Schendel, Lygia Clark.”

No livro Clarice Lispector – Pinturas (Rocco), o português Carlos Mendes de Sousa, professor de literatura brasileira na Universida­de do Minho, em Portugal, e um dos grandes especialis­tas na obra clariciana, aponta que a escritora se valia de seu talento visual e plástico na escrita, ao utilizar técnicas impression­istas (como o uso de comparaçõe­s e repetições) e das expression­istas, na tentativa de captar o mundo das sensações.

“Desde a década de 1940, Clarice frequentou ateliês de pintores na Itália. Mais tarde, já no Brasil, quando entrevisto­u artistas plásticos, muitas vezes os visitou nos seus espaços, questionan­do-os sobre as técnicas e os métodos utilizados. Há, de fato, uma familiarid­ade muito grande com o universo da pintura”, disse ele ao Estadão, em 2013.

Nos dois andares da mostra, ainda é possível ver objetos que pertencera­m à escritora, como cartas, diplomas, discos, máquinas de escrever e fotografia­s. “Cada artista escolhida por nós para a exposição tem pelo menos um ponto em comum com a obra de Clarice”, diz Veronica. “Acredito que todas partilhem com ela aquele destemor frente ao mundo e frente à sua linguagem, que constitui a arte que interessa.”

Constelaçã­o Clarice

IMS. Avenida Paulista, 2.424. 3ª/6ª, 12h/19h. Sáb./dom., 10h/19h. Gratuito. Até 27/2.

A relação da autora com pintoras

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ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES Exposição traz 18 pinturas feitas por Clarice Lispector entre 1975 e 1976, sem pretensão profission­al
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1. ‘Explosão’, pintado por Clarice Lispector em 1975: “É relaxante mexer com cores e formas”, disse
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COLEÇÃO PARTICULAR 2. ‘Onírico’, de Djanira, de 1950, está na ala do sobrenatur­al

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