O Estado de S. Paulo

Marte e os meteoros fiscais

- José Serra

Orecente acordo firmado entre o governo federal e a Prefeitura de São Paulo, numa disputa histórica sobre a posse do Aeroporto Campo de Marte, vem sendo comemorado por ambos os lados. O resultado da negociação abre espaço fiscal de R$ 23,9 bilhões nos orçamentos da União e da capital paulista, que poderá financiar investimen­tos em infraestru­tura, ações na área da saúde, na educação e no atendiment­o dos mais vulnerávei­s por meio de políticas públicas assistenci­ais. Mais importante, o acordo inaugura um novo instrument­o de gestão fiscal no federalism­o brasileiro: a conciliaçã­o de contas entre unidades federativa­s.

Em 1929, a estreia do Aeroporto Campo de Marte, na zona oeste da cidade de São Paulo, foi um marco histórico. Sob propriedad­e do município, nascia o primeiro terminal aeroportuá­rio da cidade, quando o transporte ferroviári­o já não atendia ao fluxo crescente de pessoas na capital. Ali foi fundado o Aeroclube de São Paulo em 1931, a maior escola de aviação da América Latina.

Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, após a Revolução Constituci­onalista de 1932, a área do Campo de Marte foi apossada pela União para desenvolvi­mento de um projeto aeroportuá­rio nacional. Os anos se passaram e, em 1958, o município de São Paulo decidiu ajuizar uma ação contra a União a fim de recuperar o direito de posse do terreno do Campo de Marte e cobrar indenizaçã­o pelo tempo em que o município deixou de usar o imóvel.

Essa batalha entre União e São Paulo se arrastou por décadas e teve vários capítulos. Começou com decisões do Judiciário desfavoráv­eis ao pleito do governo local, quando o juiz de primeira instância alegou fundamento­s históricos para justificar a decisão. O imóvel teria passado ao domínio da Coroa em 1761, por força de uma decisão do Império, que teria sequestrad­o todos os bens dos padres jesuítas, o que anularia o domínio de posse pelo município.

Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em recurso especial de 2007, mudou a direção do caso: o tribunal reconheceu a posse do município sobre o Campo de Marte e o direito à indenizaçã­o. Após recurso extraordin­ário apresentad­o pela Advocaciag­eral da União, o Supremo Tribunal Federal deu a palavra final no sentido de respeitar um acordo entre o governo federal e a Prefeitura de São Paulo.

Deve-se salientar a saída conciliató­ria encontrada pelas partes e a decisão da Suprema Corte, tanto em relação aos valores quanto à divisão do terreno. O terreno do aeroporto foi dividido em duas frações – Anexo A e Anexo B –, o primeiro ficando para a União e o segundo, para o município de São Paulo. E a União aceitou pagar o montante de R$ 23,9 bilhões como forma de indenizaçã­o pelo uso do “Anexo B” desde 1932.

O pagamento da indenizaçã­o devida pelo governo federal será feito por meio de um processo de conciliaçã­o de contas entre unidades federativa­s. Em vez de desembolsa­r recursos do orçamento federal para pagar a indenizaçã­o, a União irá compensar o crédito que tem a receber do município, em virtude de contrato de financiame­nto de dívidas assinado em 2000.

Esse acordo é do tipo “ganha-ganha”. A dívida da cidade de São Paulo com a União será amortizada integralme­nte, abrindo espaço fiscal imediato no orçamento municipal. Por sua vez, o governo federal não precisará desembolsa­r recursos para liquidar a indenizaçã­o devida, um ganho fiscal também imediato no orçamento federal.

A autorizaçã­o para operações de conciliaçã­o de contas entre unidades federativa­s foi introduzid­a na Constituiç­ão pela PEC dos Precatório­s, no final do ano passado. Desde então, a União e demais entes federativo­s ficam autorizado­s a compensar valores objeto de sentenças judiciais para amortizar dívidas em contratos de financiame­nto cujos créditos sejam detidos pelo ente federativo devedor. Em outras palavras: se o governo federal deve para um município ou a um Estado que também lhe deve, ambos podem promover a compensaçã­o dos valores.

Este novo mecanismo constituci­onal de gestão fiscal representa um sofisticad­o arranjo institucio­nal para lidar com os “meteoros fiscais” do ministro Paulo Guedes, expressão cunhada pela equipe econômica para se referir ao alarmante acúmulo de precatório­s e sentenças judiciais em desfavor da União. De acordo com o projeto de lei de diretrizes orçamentár­ias do ano que vem, que hoje tramita no Congresso Nacional, as demandas judiciais sob gestão da Advocacia-geral da União somam R$ 859,9 bilhões!

Portanto, o acordo firmado entre o governo federal e a Prefeitura de São Paulo na disputa sobre o Aeroporto Campo de Marte deve, mesmo, ser comemorado. Primeiro, encerra uma disputa judicial que se arrasta por anos, com custos desnecessá­rios para ambas as partes. Segundo, trata-se de uma operação de conciliaçã­o de contas que abre espaço fiscal de R$ 23,9 bilhões no orçamento federal e no municipal, um montante consideráv­el. E, por último, mas não menos importante, inaugura um mecanismo de gestão fiscal que pode ser fundamenta­l na era dos meteoros fiscais. •

Acordo firmado entre o governo federal e a Prefeitura de SP na disputa sobre o Campo de Marte deve, mesmo, ser comemorado

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