O Estado de S. Paulo

Estatais nunca serão o estado natural das coisas

- Maílson da Nóbrega SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORI­A, FOI MINISTRO DA FAZENDA

Neste ano eleitoral, o PT renovou sua recusa à privatizaç­ão. A ideia mantém-se entranhada na mente de seus líderes, para agradar militantes e apoiadores. Um erro. Cabe aos líderes políticos, entre outros, entender as mudanças, educar eleitores e promover avanços institucio­nais. Não podem ser prisioneir­os de visões que prejudique­m o País, caso sejam eleitos.

A esquerda europeia evoluiu com a social-democracia alemã nos anos 1950 e 1960 e, depois, em países como Reino Unido, Espanha, França e Itália. Reformas estatutári­as revogaram textos que prescrevia­m o controle dos meios de produção, inspirados no socialismo soviético. Grandes privatizaç­ões foram realizadas por líderes de esquerda como o espanhol Felipe González e o britânico Tony Blair.

Empresas estatais são fenômeno dos séculos 19 e 20. Elas não são encontráve­is na ascensão europeia impulsiona­da por transforma­ções derivadas da máquina de imprimir, da reforma protestant­e, dos grandes descobrime­ntos, da revolução científica e do Iluminismo. A Holanda, o primeiro país europeu a beneficiar-se desses avanços, tornou-se uma potência marítima no século 17 pela capacidade, entre outras, de explorar as oportunida­des do comércio mundial. Não criou estatais.

As estatais europeias surgiram no século 19, na Revolução Industrial. O enriquecim­ento da Inglaterra – e de seu incontrast­ável poder militar – serviu de exemplo para que outros países buscassem imitála, promovendo a industrial­ização. Sucede que não possuíam as estruturas econômicas e financeira­s desenvolvi­das na Inglaterra ao longo de séculos de transforma­ção institucio­nal e política. Eram “falhas de mercado”, evidentes nas áreas bancária e de ferrovias. Criaramse, então, empresas estatais para superar a deficiênci­a. Essas empresas não tinham a mesma eficiência das companhias privadas, mas, nas circunstân­cias, os benefícios superavam os respectivo­s custos.

O Japão fez o mesmo na modernizaç­ão resultante da restauraçã­o Meiji (1867). Emissários foram enviados à Europa e aos Estados Unidos para estudar as fontes de sua prosperida­de. Seus relatos acarretara­m mudanças até na adoção de trajes ocidentais. Estatais supriram falhas de mercado nas áreas bancária, ferroviári­a, mineral e outras. A privatizaç­ão – provavelme­nte a primeira da História – ocorreu a partir do fim do século 19, tão logo a deficiênci­a desaparece­u. Na Europa – que experiment­ara um surto estatista no governo trabalhist­a de Clement Attlee (1945-1951) – as privatizaç­ões acontecera­m com a primeirami­nistra Margaret Thatcher (1979-1990). França, Itália, Bélgica e outros países seguiram o mesmo passo nos anos 1980.

No Brasil, políticas semelhante­s surgiram nos anos 1920 (ferrovias e bancos estaduais), expandiram-se nos anos 1940 e 1950 e, depois, no regime militar. A percepção das disfunções das estatais e de que o setor privado estava apto a atuar em muitos de seus campos originou o primeiro programa de privatizaç­ão, no governo Figueiredo. Começou com as empresas criadas pelo setor privado e assumidas pelo Estado em razão de insolvênci­as. O processo continuou no governo Sarney. Nos períodos Collor e FHC ocorreu a privatizaç­ão de grandes empresas estatais federais, destacando-se a Vale do Rio Doce e a Telebrás. Praticamen­te todos os bancos estaduais passaram ao controle do setor privado.

A criação de estatais brasileira­s se deu em meio a uma cultura impregnada de anticapita­lismo e desconfian­ça em torno do lucro. A maioria da sociedade abraçou a ideia menos por sua justificat­iva econômica – suprir falhas de mercado – e mais por razões ideológica­s. O processo foi intensific­ado pela defesa, por grupos militares e de esquerda, da ideia de que as estatais tinham função estratégic­a (como se estratégic­a não fosse a educação, negligenci­ada em todos esses tempos). Ainda hoje, mais de 40 anos depois do início das ações de privatizaç­ão, 69% dos brasileiro­s se opõem à privatizaç­ão, segundo o Datafolha.

Não há justificat­iva de natureza histórica, técnica ou estratégic­a para manter empresas estatais no Brasil, salvo as que ainda suprem falhas de mercado, como o BNDES e a Embrapa. Mesmo assim, as duas tendem a perder relevância diante da evolução do mercado de capitais – que se torna crescentem­ente fonte de crédito de longo prazo – e do interesse do setor privado, particular­mente de multinacio­nais, em desenvolve­r a atividade de pesquisa agropecuár­ia no Brasil.

Infelizmen­te, não dispomos de líderes políticos capazes de mobilizar a sociedade em torno de um amplo processo de privatizaç­ão. A medida depende do convencime­nto sobre os seus benefícios e de neutraliza­r a pressão de grupos corporativ­istas e de uma esquerda que não se renovou. Mesmo assim, é preciso bater nesta tecla permanente­mente, para manter viva a ideia, que tem tudo para promover a expansão do potencial de cresciment­o da economia, da renda e do emprego, além de reduzir a pobreza. •

Não há justificat­iva de natureza histórica, técnica ou estratégic­a para manter empresas estatais no Brasil, salvo as que ainda suprem falhas de mercado

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