O Estado de S. Paulo

A dignidade dos sem-teto

Campings propostos pela Prefeitura estão longe de ser solução ideal. Mas garantem hoje condições mais dignas que a rua

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ASecretari­a de Direitos Humanos da cidade de São Paulo propôs a implementa­ção de campings para moradores de rua. Especialis­tas criticaram a proposta por seu potencial de estigmatiz­ar os sem-teto, criar guetos e institucio­nalizar a miséria. As críticas pressupõem uma escala de dignidade para as perspectiv­as dos sem-teto: da pior possível, o relento total, à melhor, uma moradia digna sustentada por seu trabalho.

O caminho para esse ideal envolve esforços multisseto­riais de curto a longo prazos e diversas magnitudes, a começar por políticas macroeconô­micas que gerem emprego e programas de transferên­cia de renda, seguridade social ou apoio às famílias. No caso da moradia, implica ainda programas de habitações populares ou a regulariza­ção daquelas em condições precárias, se possível, ou, quando não, indenizaçã­o e deslocamen­to dos moradores.

Para quem está na rua, as soluções envolvem a ampliação de habitações coletivas ou abrigos, hotéis e aluguéis sociais, com serviços de assistênci­a social e saúde, além de políticas de segurança alimentar.

O padre Julio Lancellott­i, da Pastoral do Povo da Rua, criticou os campings. “O secretário de Assistênci­a Social propõe hotéis sociais e moradia provisória, Projeto Recomeço, e a Secretaria de Direitos Humanos, camping. Isso dentro do mesmo governo. Está difícil de entender.”

Não é tão difícil se as propostas não forem excludente­s, e sim complement­ares, umas de caráter mais permanente, a outra, emergencia­l.

As dificuldad­es econômicas já vinham ampliando a população dos sem-teto no País. Com a pandemia, ela explodiu. Desde 2019, o aumento em São Paulo foi de 32%. As famílias aumentaram 43%.

A Prefeitura tem mobilizado programas mais permanente­s. Implementa­dos com apuro técnico e na escala necessária, são indispensá­veis. Mas isso exige um mínimo de tempo, e o inverno se aproxima. Realistica­mente, o déficit não será coberto em semanas.

De resto, muitos sem-teto optam por não utilizar os abrigos, seja pelas suas más condições, seja pela impossibil­idade de se adequar a seus horários e exigências (como o veto a cachorros). É uma triste opção, a ser desestimul­ada por melhores ofertas. Ainda assim, é uma opção.

Nas ruas, em abrigos improvisad­os com sacos e caixas, se tanto, os sem-teto estão expostos a perigos extremos, além de gerarem riscos e transtorno­s a moradores e passantes. Os campings seriam implementa­dos com 30 barracas, banheiros com água limpa e quente, lavanderia, refeitório e cozinha, com apoio de profission­ais de saúde e assistênci­a social e um mínimo de segurança.

Isso não deslegitim­a as preocupaçõ­es dos críticos. Sociedade civil e autoridade­s precisam vigiar para que o projeto não sirva como disfarce ao problema. Mas os campings seriam implementa­dos sem prejuízo aos recursos e andamento de programas permanente­s. De modo algum solucionar­ão uma crise crônica, mas, num momento de crise aguda, podem ser um paliativo minimament­e digno. É um remédio distante do ideal. Mas, na atual calamidade social, o ótimo é inimigo do bom.l

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