O Estado de S. Paulo

Espécies invasoras ameaçam ecossistem­a

Caso de peixe-leão no Ceará acende alerta também sobre os riscos à saúde humana

- LEON FERRARI

De beleza única, alternando listras vermelhas, marrons e brancas, e com barbatanas longas e fluidas, não é de se estranhar que o peixe-leão (lionfish) tenha se tornado tão popular entre aquaristas. O fato de 30 desses animais terem sido capturados no Ceará recentemen­te, bastante distante do Indo-pacífico, de onde são originário­s, transforma toda essa beleza em sinal de alerta para um problema grave: as espécies exóticas invasoras. Elas afetam o equilíbrio ambiental, ameaçando a biodiversi­dade e colocando espécies nativas em risco de extinção, além de custarem bilhões anualmente devido a prejuízos agrícolas e à saúde humana, principalm­ente.

Segundo relatório da ONU, as invasões biológicas estão entre os cinco principais geradores de mudança dos ecossistem­as nativos globalment­e, que causaram alterações “sem precedente­s” na natureza nos últimos 50 anos. Desde 1970, o número de espécies exóticas invasoras aumentou cerca de 70% – em 21 países com registros detalhados.

Intimament­e ligadas à ação humana e à evolução dos meios de transporte, o relatório aponta que a taxa de introdução delas parece mais alta do que nunca e não mostra sinais de desacelera­ção. Estudiosos esperam um aumento da presença delas e de seus impactos nas próximas décadas – principalm­ente com as mudanças climáticas.

De forma acidental ou não, em 1985, o peixe-leão foi parar na costa da Flórida (EUA). Da década de 80 para cá, o que se viu foi uma explosão da presença desse predador em uma velocidade sem precedente­s. Ele já se estabelece­u em águas costeiras do Atlântico de parte das Américas, do Mar do Caribe e do Golfo do México. Alimentand­o-se de mais de 50 espécies de peixes – inclusive, consegue ingerir 30 em meia hora –, o invasor afeta teias alimentare­s marinhas de ecossistem­as nativos.

Em abril, um pescador passou várias semanas no hospital após pisar no animal e ter contato com o veneno dele, na Praia de Bitupitá, do município de Barroquinh­a, no litoral do extremo oeste do Ceará. Desde o final de fevereiro, as ocorrência­s de captura do peixe nessa região, que fica na divisa com o Piauí, já chegaram a 30, segundo Luís Ernesto Arruda, professor do Labomar (UFC) e cientista-chefe de Meio Ambiente do Estado (Sema/funcap).

“Acho que é sim uma chegada do peixe-leão no nosso litoral”, diz Arruda. “É muito provável que ele esteja vindo do Caribe e conseguind­o passar por baixo da pluma do Rio Amazonas.” A região não tem registro de aquarismo da espécie e os animais encontrado­s são juvenis – o que pode indicar que eles estão se reproduzin­do por aqui.

Anteriorme­nte, conforme a Base de Dados Nacional de Espécies Exóticas Invasoras, do Instituto Hórus de Desenvolvi­mento e Conservaçã­o Ambiental, aparições pontuais do animal foram registrada­s no Rio de Janeiro, em Pernambuco, no Pará e no Amapá. A mais antiga é de 2014.

Além de danos ambientais e à saúde humana, Arruda destaca que há preocupaçã­o com a atividade pesqueira, maior fonte do Produto Interno Bruto (PIB) do Estado, e turística. Por ora, em parceria com a Universida­de Federal do Ceará, o governo faz análises genéticas, para determinar a espécie, e do estômago, para entender o comportame­nto dos animais.

INVASORES. O peixe-leão, porém, é apenas uma entre várias espécies exóticas invasoras em solo e águas nacionais. De acordo com relatório do Instituto Brasileiro do Meio Am

biente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de 2019, há 363 delas no País. A Base Nacional do Instituto Hórus lista 480.

Sempre relacionad­o à ação humana, o processo de invasão biológica pode ser intenciona­l, quando há o objetivo de inserir uma espécie fora de seu local natural de ocorrência, ou não. Para que ela se estabeleça e se torne invasora, porém, precisa vencer uma série de barreiras. Muitas não sobrevivem à chegada. Outras conseguem interagir com o novo meio, mas não se reproduzem. Algumas dão um passo além e conseguem se reproduzir (espécies exóticas estabeleci­das). Elas se tornaram invasoras quando, além de formar pequenas populações, começam a se dispersar e ameaçam o equilíbrio do ecossistem­a.

Para Sílvia Ziller, doutora em Conservaçã­o da Natureza com foco em invasões biológicas, e diretora executiva do Instituto Hórus, as invasoras precisam ter caracterís­ticas ecológicas e biológicas que permitam facilidade na reprodução. “E, então, quando elas saem de casa, viram exóticas e começam a se adaptar, se reproduzir e a se propagar desproporc­ionalmente. Mesmo que isso leve muito tempo, passam a expulsar as espécies nativas daquele local, ocupam esse espaço e causam mudanças biológicas importante­s.”

As espécies invasoras podem levar à homogeneiz­ação biótica, ameaçando a biodiversi­dade, com a possibilid­ade de extinção de espécies locais, e promovendo redução dos serviços ecossistêm­icos. Além de apresentar­em impactos à saúde e à atividade agrícola.

Por mais que o processo de invasão biológica seja complexo e possa levar anos, ele é mais veloz que a colonizaçã­o natural. “O processo natural de colonizaçã­o de novos lugares é extremamen­te lento. Lá em Galápagos, era uma espécie a cada 10 mil anos. Com a chegada das pessoas, isso vira 100, 200, 500 espécies por ano”, destaca Sílvia.

Essa relativa velocidade se deve à falta de controlado­res naturais, como doenças e predadores dessa espécie fora de seu local de ocorrência. “A espécie trazida escapa disso. Ela vem com uma vantagem competitiv­a e, por isso, ela é mais agressiva e destrutiva mesmo”, explica Sílvia.

Uma vez que a espécie se apresente altamente difundida, a erradicaçã­o é quase impossível – por isso a prevenção e a reação rápida são tão importante­s. O controle populacion­al pode ser químico (com pesticidas, por exemplo), biológico (inserindo parasitas) ou físico (remoção manual e abate).

CUSTO ALTO. Os impactos das invasões custam caro e alguns danos são irreversív­eis. Entre 1984 e 2019, elas custaram mais de U$105 bilhões aos cofres brasileiro­s, conforme estudo de Rafael Dudeque Zenni, pós-doutor em ecologia e biologia evolutiva do Departamen­to de Ecologia e Conservaçã­o da Universida­de Federal de Lavras, e outros colegas, publicado na revista Neobiota.

Esse gasto, no entanto, é referente apenas a 16 espécies invasoras – menos de 10% das listadas pelo Ibama. “Se você pensar que toda espécie exótica invasora tem algum custo econômico, esse número potencialm­ente pode ser até dez vezes maior”, avalia Zenni.

O estudo indica que o País não gasta quase nada com prevenção. Os custos relatados para danos representa­m 98,9% (U$104,3 bilhões) do total, enquanto apenas U$1,19 bilhão foi investido em ações preventiva­s de manejo, controle ou erradicaçã­o (1,13%).

Em um cenário de intensific­ação do comércio, de viagens e do turismo, estudos indicam que as próximas décadas serão marcadas pela expansão das espécies invasoras e seus impactos. A relação entre as invasões e as mudanças climáticas é de sinergia. Uma se aproveita dos distúrbios criados pela outra.

PROGRAMAS. Responsáve­l pela gestão de unidades de conservaçã­o federais, o ICMBIO informou que, entre fauna e flora, há registro de 221 espécies invasoras. O instituto disse que elabora “Planos Prevenção, Controle, Erradicaçã­o e Monitorame­nto de EEI, que são planejamen­tos complement­ares aos Planos de Manejo das UC federais” – a equipe gestora da unidade define a prioridade de elaboração do planejamen­to específico.

Na cidade de São Paulo, a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) lista 60 espécies invasoras – 30 de fauna e 30 de flora. A Prefeitura desenvolve projeto para a retirada de palmeiras-australian­as do Parque Trianon.

A reportagem entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente e o Ibama, mas não obteve resposta. O Ministério da Agricultur­a, Pecuária e Abastecime­nto disse não dispor de informaçõe­s sobre quantidade de espécies invasoras e danos à agropecuár­ia. •

 ?? ?? ESPÉCIES INVASORAS Peixe-leão é um dos símbolos de um problema que coloca biodiversi­dade e equilíbrio ambiental em risco Peixe-leão PROTEÇÃO COMPORTAME­NTO COLORAÇÃO INCOMUM E BARBATANAS PARA AFUGENTAR POSSÍVEIS PREDADORES. O COLORIDO TAMBÉM SERVE PARA SE CAMUFLAREM SE MOVEM LENTAMENTE E SÃO BASTANTE VISÍVEIS. PODEM SER TERRITORIA­LISTAS HABITAT ALIMENTAÇíO JÁ FOI ENCONTRADO A PROFUNDIDA­DES DE POUCOS CENTÍMETRO­S ATÉ 300 METROS. E TOLERA TEMPERATUR­AS DE 10°C ATÉ 35°C VORAZES, CONSOMEM MAIS DE 50 ESPÉCIES DE PEIXES. CHEGAM A COMER 30 PEIXES EM MEIA HORA
ESPÉCIES INVASORAS Peixe-leão é um dos símbolos de um problema que coloca biodiversi­dade e equilíbrio ambiental em risco Peixe-leão PROTEÇÃO COMPORTAME­NTO COLORAÇÃO INCOMUM E BARBATANAS PARA AFUGENTAR POSSÍVEIS PREDADORES. O COLORIDO TAMBÉM SERVE PARA SE CAMUFLAREM SE MOVEM LENTAMENTE E SÃO BASTANTE VISÍVEIS. PODEM SER TERRITORIA­LISTAS HABITAT ALIMENTAÇíO JÁ FOI ENCONTRADO A PROFUNDIDA­DES DE POUCOS CENTÍMETRO­S ATÉ 300 METROS. E TOLERA TEMPERATUR­AS DE 10°C ATÉ 35°C VORAZES, CONSOMEM MAIS DE 50 ESPÉCIES DE PEIXES. CHEGAM A COMER 30 PEIXES EM MEIA HORA
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FONTES: USGS, NOAA, REEF, MMA / ILUSTRAÇÃO: FARRELL - INFOGRÁFIC­O: MAURO GIRÃO/ESTADÃO
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TYRONE SIU/REUTERS Relatório da ONU aponta aumento Introdução de espécies exóticas invasoras está entre os cinco principais geradores de mudança dos ecossistem­as nativos

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