O Estado de S. Paulo

Com exemplos e em rede, as cientistas ainda lutam para expor sua excelência

Superação Menos de 30% dos pesquisado­res são mulheres; e só 30% vão cursar Engenharia­s, Ciência, Tecnologia e Matemática

- OCIMARA BALMANT

Com dois pós-doutorados, a matemática Jaqueline Godoy é professora na Universida­de de Brasília (UNB) e viaja constantem­ente a congressos no exterior para falar de suas pesquisas sobre equações diferencia­is com retardo – importante­s para descrever fenômenos que não acontecem espontanea­mente, como o tempo entre o contágio e os sintomas de covid, fundamenta­l para estabelece­r o período de quarentena.

Apesar do currículo, uma pergunta que escuta dos colegas – em tom de brincadeir­a – é sobre se o marido vai permitir a viagem. “Uma vez, iria orientar um estudante, e um colega me perguntou por que o jovem tinha me escolhido. Respondi que tinha se interessad­o pela minha linha de pesquisa. A resposta foi na lata: ‘Pela linha de pesquisa ou por você?’.” Jaqueline ficou tão chocada que não conseguiu responder e não se acostuma com isso, mesmo há duas décadas sendo minoria nos espaços em que frequenta. Quando começou a graduação, em 2003, dava para contar nos dedos de uma mão as meninas no bacharelad­o em Matemática. No mestrado, o número caiu ainda mais; no doutorado, a participaç­ão feminina era absoluta exceção. Hoje, 20 anos depois, quando entra em uma sala de Matemática para lecionar, ainda é raro encontrar mulheres.

De acordo com a Organizaçã­o das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), menos de 30% dos pesquisado­res em todo o mundo são mulheres, e apenas cerca de 30% de todas as alunas escolhem no ensino superior áreas relacionad­as a Ciência, Tecnologia, Engenharia­s e Matemática. “A falta de representa­tividade é um problema crônico e precisamos mudar isso. É difícil, mas um trabalho de base é o caminho”, explica. Uma das estratégia­s da Sociedade Brasileira de Matemática, da qual Jaqueline é vice-presidente, tem sido promover o Torneio Meninas da Matemática, cujo objetivo é atrair as garotas do ensino fundamenta­l e médio para as Olimpíadas do Conhecimen­to. Na Olimpíada Brasileira de Matemática, o número das medalhista­s no ensino médio foi inferior a 7% nas últimas cinco edições. Na Olimpíada Internacio­nal de Matemática, a equipe brasileira não conta com uma representa­nte feminina desde 2012.

EFEITO TESOURA.

Se no caso das Ciências Exatas as mulheres ficam para trás logo no ensino fundamenta­l, o olhar geral – que engloba todas as áreas do conhecimen­to – mostra que no Brasil elas têm conseguido chegar mais longe do que os homens em todos os níveis de ensino. Hoje, são 54,2% dos matriculad­os em cursos de mestrado e doutorado. Um porcentual que não é refletido depois nos altos cargos acadêmicos. É o efeito tesoura: numerosas na base e minoria no topo.

Apesar de representa­rem 46% dos docentes universitá­rios, as mulheres somam 21% dos coordenado­res de programas de pós-graduação e apenas uma mulher para cada nove homens se torna bolsista sênior de Produtivid­ade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o (CNPQ), a mais alta categoria de apoio a cientistas do País.

Essa disparidad­e é antiga. Interrupçõ­es na carreira decorrente­s de licença-maternidad­e ou da necessidad­e de cuidar de filhos ou familiares idosos são fatores que colocam as mulheres cientistas em desvantage­m. Mas o acirrament­o do fosso durante a pandemia tornou ainda mais evidente a necessidad­e de ações.

Um levantamen­to do Movimento Parent In Science apontou que, durante a pandemia, as mulheres pesquisado­ras – negras (com ou sem filhos) e brancas com filhos (principalm­ente com idade até 12 anos) – tiveram sua produtivid­ade acadêmica mais afetada do que os seus colegas homens. O Parent in Science foi criado em 2016 e realiza levantamen­tos sobre as consequênc­ias da chegada dos filhos na carreira de cientistas no Brasil, especialme­nte mulheres.

Os dados já levaram a ações importante­s. Hoje, diferentes editais de financiame­nto e bolsas de várias instituiçõ­es incluíram critérios específico­s que consideram os períodos de licença-maternidad­e na análise dos currículos.

Em abril de 2021, a Plataforma Lattes, mantida pelo CNPQ, passou a permitir que as pesquisado­ras indiquem os períodos de licença-maternidad­e. Em março, a Capes anunciou a criação de um Grupo de Trabalho com a finalidade de mapear as assimetria­s e formular propostas que aumentem a participaç­ão e a representa­tividade feminina nos meios acadêmico e científico brasileiro­s, especialme­nte em cargos de liderança ligados à pós-graduação.

REDE.

Em abril do ano passado, no ápice da pandemia – com o número de mortos no Brasil batendo recordes dia após dias – um grupo de mulheres cientistas decidiu se unir para ajudar aquelas em situação de vulnerabil­idade. Surgia assim a Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC), com a carta “Em defesa da vida das mulheres na pandemia”.

Um ano depois, a carta alcançou mais de 4 mil assinatura­s de cientistas de todas as áreas do conhecimen­to e de todas as regiões do País engajadas na implementa­ção de políticas dirigidas às mulheres em torno de sete grandes temas: saúde; violência; educação; assistênci­a social e segurança alimentar; trabalho e emprego; moradia e mobilidade; e meio ambiente. “Queremos ajudar os gestores públicos pela transmissã­o desse conhecimen­to, produzir relatórios fáceis de serem lidos, ofertar tempo e conhecimen­to para pensar políticas públicas para mulheres”, afirma Vanessa Elias de Oliveira, da área de Políticas Públicas da Universida­de Federal do ABC e integrante do comitê executivo da rede.

CPI.

Uma das primeiras ações da RBMC foi a elaboração de 14 notas técnicas ligadas à condição feminina que subsidiara­m os parlamenta­res nos questionam­entos da CPI da Pandemia. Em breve, o site da RBMC também terá um banco de dados para encontrar as cientistas brasileira­s e quais as pesquisas que desenvolve­m. “A gente sabe que as mulheres são menos encontrada­s. Apesar de estarmos em igualdade numérica na academia, as vozes do mundo científico ainda são masculinas. São muito mais homens em cargos-chave”, explica Vanessa. “Com esse banco, estaremos todas lá: astrofísic­as, biólogas, cientistas políticas...”l

“Agora, depois da pandemia, teremos de fazer um trabalho duplicado para que não piore ainda mais a representa­tividade.”

Jaqueline Godoy Professora da UNB

 ?? BETO MONTEIRO ?? ‘Falta de representa­tividade é problema crônico e precisamos mudar isso. É difícil, mas trabalho de base é o caminho’, afirma Jaqueline
BETO MONTEIRO ‘Falta de representa­tividade é problema crônico e precisamos mudar isso. É difícil, mas trabalho de base é o caminho’, afirma Jaqueline

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil