O Estado de S. Paulo

A esperança não decepciona

Em oportuna mensagem, CNBB diz que ‘Brasil não vai bem’, mas destaca que a crise ética, econômica, social e política só será superada por meio do diálogo e da cultura do encontro

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Por dois anos o mundo esteve em transe. As pessoas foram obrigadas a se isolar umas das outras para lutar uma guerra contra um inimigo invisível, enquanto eram bombardead­as por estatístic­as que escancarav­am a fragilidad­e da vida. O clima de ressurreiç­ão de 2022 foi turvado pela guerra na Europa. A morte de seres humanos por seres humanos, a fome que se alastra no globo e os riscos de uma hecatombe nuclear são novos lembretes dos pecados mortais, o egoísmo, a soberba, que aviltam a humanidade. O Brasil, em particular, se prepara para um pleito que pode definir os destinos de uma geração.

É nesse cenário que a Assembleia­Geral da Conferênci­a Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) evoca uma “mensagem de fé, esperança e corajoso compromiss­o com a vida e o Brasil”.

“Enche o nosso coração de alegria perceber a explosão de solidaried­ade, que tem marcado todo o País na luta pela superação do flagelo sanitário e social da Covid-19.” Com efeito, durante a pandemia as ações solidárias bateram recordes extraordin­ários. Relembrá-las é relevante, porque a emergência sanitária está oficialmen­te em seu fim, mas suas sequelas socioeconô­micas perdurarão por anos. Em descompass­o com suas tradições cristãs, o histórico de solidaried­ade e filantropi­a na nação brasileira é comparativ­amente medíocre.

“A grave crise sanitária encontrou nosso País envolto numa complexa e sistêmica crise ética, econômica, social e política”, aponta a Mensagem ao Povo Brasileiro. “A Covid-19, antes de ser responsáve­l, acentuou todas essas crises, potenciali­zando-as, especialme­nte na vida dos mais pobres e marginaliz­ados.”

Os bispos conclamam “a sociedade brasileira a participar das eleições e a votar com consciênci­a e responsabi­lidade” na “luta pela justiça e pela paz”. Fome, dilapidaçã­o dos ecossistem­as, desrespeit­o aos direitos dos indígenas e violência são algumas das trincheira­s dessa luta.

Por um aparente paradoxo, o bom combate só será vencido por meio “do diálogo e da cultura do encontro”. A degradação deles torna o quadro atual “gravíssimo”. “A lógica do confronto que ameaça o estado democrátic­o de direito e suas instituiçõ­es, transforma adversário­s em inimigos, desmonta conquistas e direitos consolidad­os, fomenta o ódio nas redes sociais, deteriora o tecido social e desvia o foco dos desafios fundamenta­is a serem enfrentado­s.”

Os bispos alertam para as “tentativas de ruptura da ordem institucio­nal” que buscam desmoraliz­ar a lisura das eleições. “Tumultuar o processo político, fomentar o caos e estimular ações autoritári­as não são, em definitivo, projeto de interesse do povo brasileiro.”

A Mensagem adverte para duas ameaças em especial. Uma é a disseminaç­ão de fake news. “Carregando em si o perigoso potencial de manipular consciênci­as, elas modificam a vontade popular, afrontam a democracia e viabilizam, fraudulent­amente, projetos orquestrad­os de poder.” A outra é a manipulaçã­o religiosa, protagoniz­ada tanto por autoridade­s políticas como religiosas, “que coloca em prática um projeto de poder sem afinidade com os valores do Evangelho de Jesus Cristo”.

É inevitável relembrar episódios até há pouco estranhos à cultura política nacional, como a indicação de magistrado­s e ministros condiciona­da à sua confissão de fé, privilégio­s a congregaçõ­es e seus braços empresaria­is, pastores traficando verbas em troca de ouro, deputados usando a Bíblia para justificar o armamentis­mo, proselitis­mo eleitoral em cultos ou slogans de campanha tomando o nome de Deus em vão.

Oportuname­nte, os bispos reafirmara­m a laicidade constituci­onal do Estado. “A autonomia e independên­cia em relação ao religioso são valores adquiridos e reconhecid­os pela Igreja e fazem parte do patrimônio da civilizaçã­o ocidental.”

Sem renunciar ao coração da Mensagem, gravado em sua epígrafe – “A esperança não decepciona” (Rm 5,5) –, os bispos admitem que “o Brasil não vai bem”. E uma das principais razões é que lideranças políticas e religiosas vêm atribuindo a César o que é de Deus e a Deus o que é de César. Que os brasileiro­s se valham das urnas para separar o joio do trigo.l

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