O Estado de S. Paulo

A lição do Flamengo

- Simon Schwartzma­n SOCIÓLOGO, É MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

O7 x 1 derrubou o mito de que bastavam o talento e a esperteza de alguns jogadores para sermos os melhores do mundo, e o futebol brasileiro só começou a sair do buraco quando o Flamengo decidiu importar um técnico português. Está na hora de seguir o exemplo e importar um técnico português para cuidar de nossa educação.

A Copa do Mundo da educação é o exame Pisa, que avalia estudantes de 15 anos que estão completand­o a educação fundamenta­l em dezenas de países em leitura, Matemática e Ciências. A nota média em cada uma das provas é 500, e o Brasil, desde que começou a participar, passou de 386 em leitura, em 2000, para 413 em 2018. Entre 2009 e 2018, os resultados praticamen­te não se alteraram em nenhuma das três áreas. Isso significa que, em 2018, metade dos jovens que terminam o ensino médio não tem a capacidade mínima de leitura esperada (abaixo do nível 2) e só 2% demonstram alto desempenho (acima do nível 4). E isso apesar de que os investimen­tos públicos por aluno tivessem mais que triplicado no período.

Portugal começou um pouco melhor, mas bem abaixo dos outros países europeus, mas em 2018 já havia se aproximado da média europeia. Em 2018, 20% dos estudantes portuguese­s ainda terminavam o ensino médio abaixo do mínimo esperado em leitura e 7% demonstrar­am alto desempenho.

Existe uma clara associação entre desempenho escolar e a condição social das famílias dos estudantes, e uma das primeiras políticas de Portugal, na gestão da ministra Lurdes Rodrigues (2005 a 2009), para melhorar a qualidade de sua educação foi implantar uma série de programas destinados a apoiar e melhorar o desempenho das escolas que atendem às populações de baixa renda. Depois, na gestão de Nuno Crato, entre 2011 e 2015, a ênfase foi estabelece­r metas claras de desempenho em leitura, Matemática e Ciências, com mais horas de ensino nessas matérias, um exame nacional obrigatóri­o de Matemática e Português ao final do ensino médio, reforço na formação de professore­s e maior autonomia para as escolas se responsabi­lizarem pelo cumpriment­o de suas metas. Houve, também, um investimen­to na diversific­ação do ensino médio, criando oportunida­des adequadas de formação para estudantes com diferentes níveis de desempenho.

Para implantar essas políticas, foi necessário dissipar a neblina de ideias pedagógica­s confusas e supostamen­te “progressis­tas” que vicejavam tanto em Portugal quanto no Brasil, e que ainda estão à vista para quem queira ler as bases nacionais curricular­es brasileira­s aprovadas em 2017.

Num pequeno livro publicado em 2006, O eduquês em discurso direto, o professor de Matemática e, depois, ministro da Educação Nuno Crato faz uma crítica contundent­e ao que ele denomina “pedagogia romântica e construtiv­ista” que impede que as escolas se empenhem em sua tarefa central, que é a formação dos alunos a partir da base indispensá­vel da leitura e da Matemática. O livro foi reeditado no Brasil em 2020 e é de leitura obrigatóri­a para quem queira entender a confusão em que nos metemos.

Não há como reproduzir os argumentos aqui, mas vale a pena reter os pontos principais das críticas que faz: ao “romantismo”, que remonta às ideias de Jean-Jacques Rousseau, de valorizaçã­o do instintivo em detrimento da racionalid­ade; ao construtiv­ismo, que supõe que os conhecimen­tos devem ser “construído­s” pelos estudantes, e não precisam ser ensinados pelos professore­s; ao abuso de conceitos pouco claros como “competênci­as”, “interdisci­plinaridad­e” e contextual­ização”, em detrimento da transmissã­o de conteúdos; e à “educação centrada no aluno”, que questiona a importânci­a da educação organizada e sistemátic­a, da disciplina e da avaliação regular dos resultados.

É certo que estes conceitos da “educação nova”, que na realidade datam do século 19, vieram em resposta à rigidez da educação tradiciona­l, formal e burocrátic­a, que sufoca os estudantes, os obriga a memorizar informaçõe­s sem sentido, não toma em conta as condições pessoais, sociais e culturais de suas famílias e ignora as diferenças de classe que reproduz. Mas não tem de ser uma coisa ou outra e não se pode, em nome do respeito aos alunos e suas circunstân­cias, jogar fora as crianças com a água suja do banho.

Quando e se o técnico português chegar, seu primeiro desafio será deixar claro que quem manda no jogo – e no dinheiro – é ele, e não os cartolas da educação. Feito isso, será preciso refazer a base nacional curricular, com prioridade­s claras de formação e expurgada do eduquês; cuidar da formação de professore­s, para que efetivamen­te aprendam a ensinar; fazer com que a pré-escola seja um espaço de aprendizag­em, e não depósito de crianças; garantir que a alfabetiza­ção se complete aos 7 anos; retomar a reforma do ensino médio, deturpada de seus objetivos, com opções claras e apoio à formação técnico-profission­al; e estabelece­r um sistema efetivo de avaliação de resultados escolares, com provas obrigatóri­as ao final da educação básica, e um Enem inteligíve­l e compatível com um ensino médio diversific­ado.

Está na hora de seguir o exemplo e importar um técnico português para cuidar de nossa educação

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