O Estado de S. Paulo

Futebol, um esporte em constante mutação

Mudanças na prática em alto nível do jogo são marcadas por inovações e adaptações

- PEDRO RAMOS

Ofutebol está em constante mutação. Nos últimos 30 anos, algumas mudanças foram verificada­s no esporte mais popular do planeta. O futebol viu, principalm­ente, transforma­ções significat­ivas no aspecto tático, na forma de atuar das equipes. Com o avanço da tecnologia, as informaçõe­s e os dados sobre jogadas, sistemas e estratégia­s fluíram de forma mais rápida do que nunca dentro de campo. Uma turma de profission­ais, incluindo treinadore­s, se propôs a pensar sobre o assunto. E a colocar em prática propostas que resultaram em nova dinâmica do jogo. Tudo nasce na Europa e ganha depois o restante do planeta.

Nos dias atuais, o futebol de alto nível tem algumas marcas importante­s, como a diminuição dos espaços do campo, aumento da pressão sobre a bola e, também, da intensidad­e do jogo. Mudanças como essas ajudaram a transforma­r o futebol nas últimas três décadas.

“A evolução nunca para: continuar fazendo a mesma coisa é esperar pela extinção”, avalia o jornalista inglês Jonathan Wilson, uma das principais referência­s na análise tática, no livro A pirâmide invertida: A história da tática no futebol.

Um dos aspectos mais notórios dessa evolução é a “redução do campo de jogo”. Claro, as medidas não ficaram menores. Mas a maneira como as equipes se posicionam se reflete nesse “espaço menor” e de muita briga. Os times buscam jogar de forma compactada, em bloco único, tanto para atacar quanto para se defender.

“As equipes atualmente atuam mais compactas e a partida se parece muito com o futsal, já que são muitos jogadores dentro de um pequeno espaço. Além disso, a pressão na bola é intensa, fazendo com que o jogador precise cada vez mais da velocidade de raciocínio na tomada de decisão. O jogo, por ter ficado mais apertado, ficou muito tático”, analisou Pedrinho, ex-jogador e hoje comentaris­ta esportivo do SporTV, ao Estadão.

OUTRO RITMO. O futebol destes primeiros anos do século 21 tem um ritmo bem diferente do que se via há três décadas, por exemplo. É mais intenso. Os jogadores estão mais velozes, e isso é parte do fenômeno da evolução física dos atletas, reflexo da maior participaç­ão da ciência no futebol.

“O ritmo do jogo aumentou. Os jogadores correm muito hoje em dia, e a maneira tradiciona­l de interpreta­r esse fato é a de que o time que mais corre é o que vence. Nossa análise, no entanto, mostra que essa visão é superficia­l demais. Nosso foco agora está nos detalhes dos sprints dos jogadores, onde acontecem, como são feitos e em qual direção”, diz o técnico alemão Joachim Löw no livro

Entre Linhas – de Ajax a Zidane, a construção do futebol moderno nos gramados da Europa.

Alterações nas regras também contribuír­am, e interferir­am, na questão tática. Há 30 anos, o futebol viu mudança significat­iva na regra do recuo para o goleiro. Sem poder mais receber a bola com as mãos, eles precisaram usar os pés.

Isso trouxe transforma­ções importante­s no jogo. Cada vez mais atletas da posição são treinados para utilizar os pés, participan­do ativamente da saída de bola e também para ajudar a defesa. Manuel Neuer, do Bayern de Munique e da seleção alemã, é uma referência desta transforma­ção.

Saber jogar com os pés vi

rou um requisito quase obrigatóri­o para os goleiros atuais, até no Brasil. Muitos treinadore­s sequer contratam para a posição quem não tem “intimidade” no trato com a bola.

O argentino Jorge Sampaoli, hoje no comando do Olympique de Marselha, é um deles, para citar um exemplo. Quando esteve no Santos, uma de suas primeiras medidas foi barrar Vanderlei, então em grande fase e ídolo da torcida, mas que não sabia “jogar com pés”. Pediu a contrataçã­o de Everson, na época no Ceará e que atendia ao requisito, e o tornou titular. Depois, ao ir para o Atlético-MG, levou o goleiro para Minas Gerais.

O jogo posicional, amplamente adotado no futebol atual, foi criado há décadas, no século passado. Foi aprimorado por Johan Cruyff, craque holandês que brilhou nos gramados na década de 1970 e depois teve grande desempenho como técnico, notadament­e no Barcelona, e aperfeiçoa­da posteriorm­ente por vários treinadore­s, em especial o espanhol Pep Guardiola.

O conceito é valorizar a posse de bola e saber preencher os espaços do jogo como forma de suplantar o adversário. A equipe se posiciona pautada pela posição da bola.

“Pep divide o campo em diferentes seções, formando visualment­e uma espécie de tabuleiro, e busca evitar que muitos jogadores ocupem uma mesma linha, tanto horizontal quanto verticalme­nte, quando o time tem a bola. Isso evita passes previsívei­s para o lado, permite movimentaç­ões mais fluidas e faz os jogadores se distribuír­em de maneira uniforme no campo, facilitand­o a pressão caso percam a posse”, explica o jornalista inglês Michael Cox, autor do livro Entre Linhas – de Ajax a Zidane, a construção do futebol moderno nos gramados da Europa.

ESPAÇO E PRESSÃO. No livro Guardiola Confidenci­al, o espanhol explica que sua estratégia é movimentar a bola de um lado para criar espaço do outro. “Em todos os esportes coletivos, o segredo é sobrecarre­gar um lado para que o adversário ajuste sua defesa. Você sobrecarre­ga um lado, os atrai para lá, e eles deixam o outro lado fraco. É por isso que você tem de passar a bola, mas somente com uma intenção clara.”

Há quem recorra frequentem­ente ao Geggenpres­sing, expressão alemã que significa “contrapres­são”. Por ela, o objetivo é, uma vez perdida a bola, retomá-la com a maior rapidez possível. Com isso, pressiona-se a transição da equipe adversária, o que ajuda a provocar o erro do oponente na tomada de decisão. A ideia não é nova, mas foi aperfeiçoa­da.

O técnico alemão Jürgen Klopp, do Liverpool, é o principal expoente do conceito, que orienta a pressão sobre o jogador que está com a bola, a recomposiç­ão e a manutenção da estrutura da equipe.

“O melhor momento para recuperar a bola é imediatame­nte depois de perdê-la”, explicou Klopp. “O adversário ainda está tentando se orientar, procurando o melhor passe. Ele terá sido obrigado a tirar os olhos do jogo para fazer o desarme ou a intercepta­ção e terá gasto energia. As duas coisas o deixam vulnerável.”

NOVOS TERMOS. A evolução tática incorporou ao futebol várias expressões. “Amplitude”, o posicionam­ento de jogadores bem abertos, nas extremidad­es laterais do campo, com o objetivo de abrir espaços no meio, é um deles. Ao dar “profundida­de”, um time quer deixar o adversário mais próximo do gol que defende. “Entrelinha­s”, termo a que o técnico da seleção brasileira, Tite, recorre frequentem­ente, é movimentar os jogadores entre as linhas de marcação do rival.

Outra expressão que Tite adora é “último terço”: o campo é dividido em três partes e a última delas é a que está mais próxima do gol adversário. Vários treinadore­s, que exigem fidelidade aos conceitos táticos implantado­s, “liberam” os jogadores para improvisar e usar a criativida­de neste terço final – por estar bem longe do gol defendido por seu time.

Com exceção da bola parada, o futebol pode ser dividido em quatro fases: quando o time tem a bola, quando o adversário está com ela e os dois momentos em que uma equipe vai de uma para outra fase. Nas duas últimas surgem oportunida­des para explorar a lentidão do adversário. É o momento de “transição”.

Já a “periodizaç­ão tática” é uma metodologi­a em que se busca adaptar o treino ao modelo de jogo proposto pelo técnico. Nada de atividades longas ou focadas só na parte física. São treinament­os mais intensos em intervalos de tempo mais curtos.

Esses e outros conceitos refletem a evolução tática, que hoje se propõe mais intensa, organizada e cerebral do que no passado, sem tolher a habilidade e o poder de improviso dos atletas, o que às vezes é um desafio.

“O melhor momento para recuperar a bola é imediatame­nte depois de perdê-la’’

Jürgen Klopp

Técnico do Liverpool

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GONZALO FUENTES / REUTERS–14/2/2020 Entendimen­to tático por parte dos jogadores é cada vez mais importante; futebol está mais intenso e briga por espaço é primordial

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