O Estado de S. Paulo

Abrigo salva cães, gatos e até um leão na Ucrânia

Asia Serpinska, de 77 anos, mantém vivos os bichos abandonado­s após a invasão da Rússia

- • TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Quando os tanques se aproximava­m de Kiev, moradores apavorados fugiram e as estradas ficaram congestion­adas. Asia Serpinska fez o caminho oposto. A ucraniana de 77 anos havia passado duas décadas administra­ndo um abrigo de animais em Hostomel.

Ela chegou ao abrigo no meio dos bombardeio­s. Do portão, ouviu uivos e lamúrias. “Soube que era minha responsabi­lidade cuidar dos animais”, lembra Serpinska. Ao lado de três colegas, ela manteve viva a maioria dos 700 cães e 100 gatos – e salvou um leão – enquanto russos e ucranianos trocavam fogo.

Serpinska diz que nasceu teimosa. Ela qualifica seu casamento como um atestado desse caráter: conheceu Valentin aos 18 anos. Apesar de seus pais não aprovarem, ela se casou mesmo assim.

Ela era professora de matemática, mas vivia cercada de animais, muitos resgatados como voluntária em seu tempo livre. Depois de se aposentar na universida­de, 22 anos atrás, inaugurou seu próprio abrigo – e os bichos começaram a chegar.

RESGATE. Quando a invasão começou, em 24 de fevereiro, Valentin acordou Serpinska às 7 horas, para contar que a guerra havia começado. “O primeiro pensamento foi de correr para o abrigo”, disse. “Eu estava indo consciente­mente em direção à guerra. Meu povo estava aqui, meus cães estavam aqui.”

Para alguns abrigos, a invasão foi uma tragédia. Em Bordianka, subúrbio de Kiev, o proprietár­io de um santuário de animais mantido pelo governo abandonou os bichos nas jaulas e fugiu. Sem comida nem água, 335 dos quase 500 cães morreram. Questionad­a por que ninguém retirou os animais, Natalia Mazur, diretora do abrigo, retrucou perguntand­o por que as pessoas não foram retiradas.

Serpinska ficou arrasada quando viu fotos dos corpos esquelétic­os dos animais. Em 24 de fevereiro, quando ela chegou ao seu abrigo em Hostomel, a primeira coisa que fez foi abrir as jaulas para que os animais pudessem circular livremente. “Por que não abriram as jaulas lá também?”, afirmou. “Teria sido fácil.”

Durante os bombardeio­s, a equipe de funcionári­os do abrigo manteve a ordem, não importando o que acontecess­e. A alimentaçã­o dos animais continuou às 6 horas e às 18 horas. Durante o restante do dia, eles higienizav­am e observavam os bichos. À noite, pelo menos dez cães entravam debaixo do cobertor com Serpinska. “Eles achavam que eu os protegia.”

PROTEÇÃO. Amigos e parentes imploravam para que ela fugisse. “Meu lugar é aqui”, dizia. Certa vez, quando dois soldados russos marcharam na direção do portão principal do abrigo, alguns s cães se colocaram à frente dela para protegê-la. Um dos militares sacou sua arma e atirou em uma cadela.

Em meio ao caos dos combates, os cães ficaram tão assustados que alguns escavaram buracos profundos para se esconder. Vários morreram nos bombardeio­s.

LEÃO. Quando a artilharia atingiu um zoológico privado, Serpinska assistiu horrorizad­a as chamas tomarem o local. Os donos haviam abandonado o lugar. Então, a equipe de Serpinska enfrentou a fumaça e resgatou pavões e tartarugas. “Só o leão ficou para trás”, disse. “Por cinco semanas, íamos lá sob bombardeio­s e disparos para alimentar aquele leão, porque ele havia sido trancado numa jaula e não tínhamos a chave.” Até hoje ela alimenta o felino diariament­e – a cidade está hoje sob controle ucraniano.

Hostomel está calma agora. As casas ainda estão vazias. Muitas foram incendiada­s ou destruídas. “Meus pais foram aterroriza­dos pelos soviéticos, assim como os pais deles”, afirmou. “Nossa geração tem de resistir aos russos.”

Quando ela chega ao quintal do abrigo, os cães a cercam com os rabos abanando e latindo em coro. A eletricida­de ainda não foi restabelec­ida, mas os animais parecem felizes. Um pavão aproveitav­a um raio de sol que vazava de um buraco no teto. Os gatos estavam em beliches e cada recinto era aquecido por uma lareira a carvão. “Temos um ditado”, afirmou Serpinska. “Para nós, salvar animais é ser humano.”

“Minha responsabi­lidade era cuidar dos animais” “Para nós, salvar animais é ser humano”

Asia Serpinska

Dona de abrigo de animais

 ?? HEIDI LEVINE / THE WASHINGTON POST ?? Ucraniana Asia Serpinska, de 77 anos, no abrigo de animais; resgate de risco durante bombardeio­s russos
HEIDI LEVINE / THE WASHINGTON POST Ucraniana Asia Serpinska, de 77 anos, no abrigo de animais; resgate de risco durante bombardeio­s russos

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