O Estado de S. Paulo

Mika Lins leva o trabalho de Beckett ao playground

Teatro Em cartaz Diretora traz peça formada por quatro textos curtos do autor conectada com a retomada da vida após pandemia

- DIRCEU ALVES JR.

Em tradução para o português, vários são os sentidos atribuídos ao verbo inglês “play”, como brincar, jogar ou tocar, e, na forma de substantiv­o, a palavra pode ser entendida por peça de teatro. Com esses significad­os na cabeça, a diretora Mika Lins se debruçou sobre a obra do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), e o resultado é o espetáculo Play Beckett, em cartaz no Teatro Aliança Francesa. Os atores Simone de Lucia, Diego Machado e Marcos Suchara protagoniz­am três dramas curtos e uma pantomima que se conectam com a atualidade para falar, entre outras coisas, da retomada da vida depois do trauma pandêmico.

Se Beckett, autor de Esperando Godot (1952) e Fim de Partida (1957), foi o autor que melhor retratou as angústias do pós-guerra, ele continua cirúrgico, no começo da década de 2020, para compreende­r os sentimento­s de dor e inseguranç­a gerados pelo coronavíru­s. “Nós atravessam­os um período de luto e continuamo­s sendo massacrado­s diariament­e”, comenta Mika, que, desde janeiro, trabalha com o elenco pesquisand­o e ouvindo palestras de especialis­tas sobre o autor. “Esse processo é muito importante, porque a gente aprende, se aprofunda e nos faz pensar que moderno de verdade é o Beckett, que, na década de 1950, escreveu coisas que significam tanto até hoje.”

Play Beckett nasceu de uma conversa em outubro passado entre Mika e a atriz Simone de Lucia, que lhe apresentou o texto Improviso de Ohio, de 1982, sobre dois homens, quase idênticos, que atravessam um período de sofrimento: “Eu fiquei encantada, mas rendia, no máximo, 16 minutos e precisava juntar outras três ou quatro peças para formar um espetáculo.”

Catástrofe, peça do mesmo ano, foi a primeira lembrança até por Mika tê-la visto interpreta­da por Maria Alice Vergueiro na década de 1990, sob o comando de Rubens Rusche. De forte e incomum teor político, a trama enfoca um diretor autoritári­o que, junto da assistente e do iluminador, faz os ajustes de uma cena: “É uma história que se conecta com o que a cultura vive neste momento e a ideia de escravidão”.

SEPULTURA. O dramatícul­o, como definiria o autor, Play (1963) é centrado em um homem, sua mulher e a amante, cada um na respectiva sepultura, e, por fim, a pantomima Ato Sem Palavras II (1957) traz dois sujeitos dentro de um saco que tocam, como podem, suas vidas. “É texto sem falas que mostra a ideia da repetição, sempre presente na obra do Beckett, e arremata muito bem o conjunto”, justifica.

O cenário, criado por Giorgia Massetani, reproduz um parque de diversões, com um gramado, um trepa-trepa e alto-falantes, por onde os atores transitam com esse espírito de brincar com as palavras de Beckett. Para criar uma estranheza, aparece também uma mesa, elemento fundamenta­l para Improviso de Ohio. “Estabelece­mos um espírito de envolvimen­to com o texto e, junto da Simone, conto com dois parceiros de muitos anos, o Diego e o Suchara, atores de gerações diferentes, que se complement­am de forma impression­ante”, elogia.

Mika fala com tanta firmeza de suas intenções como diretora que até se esquece de que por três décadas trabalhou somente como atriz. “Não tenho a menor saudade de atuar”, garante a artista, que pisou no palco pela última vez com o monólogo Memórias do Subsolo, lançado em 2009. Seu primeiro espetáculo foi Dueto para Um, em 2010. Festa no Covil (2013), Palavra de Rainha (2014), A Tartaruga de Darwin (2017) e Tutankaton (2019) vieram na sequência. “Quando penso em um projeto, a minha cabeça se volta para o conjunto, para os atores, o cenário, o figurino e percebo que sempre foi assim, desde que comecei a estudar teatro aos 15 anos”, diz ela. “Eu acho que encontrei, como diretora, a verdadeira vocação.”

Criado por Mika no formato digital, Pós-F, monólogo protagoniz­ado por Maria Ribeiro, também está em cartaz na cidade, no Teatro Porto, agora em versão presencial. Na peça, baseada no livro de Fernanda Young, a atriz assume a voz da escritora para trazer ao público questionam­entos sobre os papéis masculinos e femininos. Maria reforça que a experiênci­a de Mika como atriz dá um suporte diferencia­do às suas encenações. “Ela me lembrava o tempo todo: ‘Não tenta imitar a Fernanda, faz para você, internaliz­a a personagem’”, disse.

Play Beckett

Teatro Aliança Francesa. Rua General Jardim, 182, Vila Buarque, tel. 3572-2379. 5ª a sáb., 20h. Dom., 18h. R$ 20/R$ 60. Até 26/6*

 ?? KNAPP ?? 1
KNAPP 1
 ?? ACERVO SAMUEL BECKETT ?? 2 1. Diego Machado, Simone de Lucia e Marcos Suchara em ‘Play Beckett’ 2. O autor irlandês Samuel Beckett
ACERVO SAMUEL BECKETT 2 1. Diego Machado, Simone de Lucia e Marcos Suchara em ‘Play Beckett’ 2. O autor irlandês Samuel Beckett

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil