Sanções à Rússia são faca de dois gumes
Dominância do dólar sobre o sistema financeiro internacional pode estar se reduzindo
Ogoverno de Joe Biden merece grande crédito pelas duras sanções econômicas que conseguiu impor contra a Rússia em resposta à invasão à Ucrânia. Como notaram Gary Clyde Hufbauer e Megan Hogan, em um ensaio publicado em março, essas sanções foram “as mais abrangentes já impostas contra uma grande potência desde a 2.ª Guerra”. Em uma “escala de punição de 1 a 10”, os autores deram a essas sanções no mínimo nota 8.
Mas a natureza sem precedentes dessas medidas está produzindo preocupações em todo o mundo a respeito dos EUA terem “transformado em arma” seu poder financeiro, o que poderia levar, com o tempo, a um declínio da dominância do dólar – que concede ao país seus superpoderes financeiros mais do que qualquer outro fator.
Ouvi isso em primeira mão de três fontes nas quais confio. A primeira, de Nova Délhi, descreveu-me recentemente uma conversa que ocorreu nos mais altos níveis do governo indiano. O assunto: como garantir que os EUA jamais sejam capazes de fazer com a Índia o que acabam de fazer com a Rússia.
A segunda fonte é de Bruxelas, onde uma equipe da Comissão Europeia foi encarregada de descobrir maneiras de reduzir o papel que o dólar desempenha em suas importações de energia – mesmo enquanto o organismo trabalha com Washington nas sanções.
A terceira fonte, um observador da China com base na Ásia, especulou que os lockdowns excessivamente severos em Xangai – que envolveram racionamento de alimentos e produtos básicos – podem ser parte de um experimento de Pequim simulando um cenário no qual o país sofra sanções econômicas de Washington (talvez após uma invasão a Taiwan).
DÓLAR. Emerge no mundo inteiro um debate a respeito da possibilidade de a dominância absoluta do dólar sobre o sistema financeiro internacional estar minguando. Até o Goldman Sachs e o FMI alertaram que isso poderá acontecer. Tendo à visão oposta: ou seja, de que você só consegue superar o dólar se tiver nas mãos uma alternativa eficaz, que até agora não existe.
Mas é evidente que muitos países – de potências hostis, como China e Rússia, a nações amigas, como Índia e Brasil – estão se empenhando arduamente em encontrar maneiras de reduzir sua vulnerabilidade em relação aos caprichos de Washington. Nenhum desses esforços ganhou muita tração, mas vale notar que a fatia das reservas globais mantidas em dólares diminuiu de 72% para 59% ao longo das duas últimas décadas.
Isso se deve em parte aos EUA parecerem menos estáveis e previsíveis no uso desse extraordinário privilégio. Nas duas décadas que antecederam à invasão russa, os EUA intensificaram as sanções por todo tipo de motivo – em mais de 900%. Muitas dessas medidas foram reações exageradas e deveriam ser revertidas. Depois do 11 de Setembro, Washington impôs medidas intrusivas destinadas a rastrear movimentações de dinheiro enviado para terroristas.
PRESSÃO INTERNA. Os EUA aplicaram duras punições sobre bancos que não aderiram às suas sanções. Washington impôs sanções contra Irã, Venezuela, Coreia do Norte, Cuba e outros países, com frequência apenas para satisfazer críticos internos que queriam “fazer algo” sem pagar um preço tão alto. Esse tipo de guerra econômica fracassou em mudar os regimes desses países, mas provocou miséria generalizada entre as pessoas comuns que os habitam. As sanções contra a Rússia são destinadas a uma mudança de política, não de regime – e, portanto, podem vir a ser mais eficazes.
TRUMP. As sanções econômicas se ampliaram acentuadamente durante o governo de Donald Trump, que retirou unilateralmente os EUA do pacto nuclear com o Irã e posteriormente ameaçou impor sanções a qualquer empresa que fizesse negócios com o país – apesar de Teerã ter aderido ao acordo, que foi negociado segundo o ordenamento da ONU. Novamente, essas medidas funcionam apenas por causa do poder do dólar.
Eu apoio as sanções contra a Rússia, mas Biden precisa fazer um discurso que as explique melhor. Ele precisa deixar claro que a invasão russa representa o ataque mais grave em décadas contra o sistema internacional com base em regras – e, se a ação for bem-sucedida, poderia desmantelar esse sistema. É por isso que Washington tem trabalhado com seus aliados para impor essas medidas extraordinárias. O presidente precisa detalhar a base jurídica das ações tomadas pelos EUA e seus aliados. CONFISCO. Por que, exatamente, os governos podem confiscar propriedades privadas sobre as quais os donos, mesmo que sejam oligarcas russos, exercem posse plena e legal? Como as pessoas podem ter certeza de que esses poderes não serão usados para praticar abusos? Biden precisa enfatizar que os EUA somente adotarão essas medidas no futuro quando houver violações flagrantes contra o direito internacional, em escala similar às ações da Rússia.
O dólar mantém seu papel crucial no sistema internacional porque os EUA têm a maior economia do mundo. Os EUA também possuem os mercados de dívida mais líquidos, o valor de sua moeda flutua livremente e, o que é crucial, são considerados um país fundamentado no estado de direito e não suscetível a ações arbitrárias e unilaterais.
Este último critério não foi atendido por Washington em anos recentes. Biden deveria garantir que, ao travar essa batalha contra a Rússia, não corroa o singular superpoder financeiro dos EUA.
Sanções causam o temor de que os EUA estejam usando seu poder financeiro como arma