A música ambiente pode ser um convite para suspender o tempo
Em meio a uma crise, a experiência da escuta profunda de playlists especiais pode levar a abandonar o controle, desacelerar e enfrentar o colapso
Quando soube que minha mãe havia sofrido um derrame, o sentimento que veio à tona não foi o desespero, mas um impulso para resolver os problemas. Meu irmão e eu compilamos senhas para plataformas do seguro-saúde, portais de pacientes e contas bancárias em uma entrada compartilhada do app Notes. Preenchemos a papelada para pagamentos de invalidez. Consultamos advogados, imaginando como lidar com o empregador de minha mãe, que ameaçou demiti-la se ela não voltasse ao trabalho.
O derrame não foi a única crise. Havia o pavor da próxima eleição presidencial; o arrasto incessante da pandemia; a expectativa de concluir o mestrado enquanto cuidava da minha mãe; e a realidade de que, como família imigrante, todo nosso sistema de apoio estava em casa, na República Dominicana. Na maioria das vezes, meu irmão e eu estávamos sozinhos.
Então, eu pesquisei no Google. Eu fiz playlists.
Eu chamei uma delas de “se você precisar respirar” e a preenchi com os tons de sintetizador de foco suave e loops obliterantes de música ambiente. Percorri o Spotify e me deparei com dezenas de playlists projetadas para regulação do humor e autocuidado: Peaceful Indie Ambient, Lo-fi Cool Down, Ambient Chill. No Headspace, app de meditação que custa US$ 69,99 (cerca de R$ 352) por ano, encontrei paisagens sonoras selecionadas pelo sábio produtor Madlib e pelo compositor John Legend destinadas a evocar atmosferas relaxantes e propiciar dias produtivos de trabalho.
Eu não estava sozinha. Nos últimos anos, a música ambiente tornou-se um bálsamo escapista para um planeta que lida com a morte em massa, a instabilidade política, a ansiedade climática, a cultura incessante do excesso de trabalho e a dissociação que essas condições causam. O mundo da tecnologia foi rápido em lucrar: em 2017, a crítica Liz Pelly escreveu sobre a proliferação das playlists “para relaxar” do Spotify, referindose a isso como “uma ambição de transformar todas as músicas em papel de parede emocional”. Esta é a música de elevador do capitalismo tardio, uma anestesia leve do cérebro para pacificar a mente.
DESACELERAR. Mas nos meses que se seguiram ao derrame de minha mãe, a música ambiente não era apenas um ato de autocuidado mercantilizado. Ouvila exigia que eu abandonasse o controle. Fazia com que eu dispensasse o tempo progressivo. Ela me forçou a desacelerar e enfrentar o colapso.
No topo de “se você precisa respirar” está Iniziare, de Alessandro Cortini, músico italiano que começou como guitarrista, tecladista e baixista do Nine Inch Nails, também conhecido por sua música de sintetizador fantasmagórica e narrativa. Em Iniziare, ele prende o tempo.
Um único tom de sintetizador, inicialmente ligado à terra, flutua a 40 mil pés no ar, espiralando em fragmentos astrais. Ondas de feedback eletrônico se transformam em vales de ecos esticados, decaídos em abismos ocos. O tempo tornase suave, desobediente. Ao ouvi-la, sou forçada a fechar os olhos, a sentir como o som viaja pelo corpo, mudando de forma para um desvio não linear. Me sinto desapegada de qualquer versão determinista do futuro. Nesse lugar entre a luz e a escuridão, prazer e dor existem na mesma medida. Experimento toda a fragmentação da vida, os lembretes do trauma e da incerteza com os quais acordei nos últimos quatro meses. Aqui, me recuso a deixar o luto se tornar autodefinição: vivo livre da velocidade da emergência.
A música ambiente sempre conteve uma espécie de conhecimento subterrâneo. O músico e crítico britânico David Toop, que escreveu em 1995 Ocean of Sound, texto que define essa música, recentemente argumentou que ela se separou das qualidades filosóficas sugeridas durante sua gênese na década de 1970. Em um ensaio de 2019, Toop se refere a ela como uma forma musical “comprometida (implícita ou explicitamente) com um engajamento com interpretações e articulações de lugar, ambiente, escuta, silêncio e tempo”, que inspira “um estado de espírito sintonizado com a inclusão”.
E, no entanto, a visão dominante da música ambiente hoje é uma inversão caricatural dessas aspirações. Em uma indústria de bem-estar multibilionária, plataformas de streaming e apps de meditação enquadram a música ambiente como música de fundo. É música de spa e ioga, ou sons para um sono tranquilo. Em vez de abraçar o potencial da música ambiente – sua capacidade de suavizar barreiras e afrouxar ideias de som, política, temporalidade e espaço – ela se tornou instrumentalizada, diminuída. ESCUTA PROFUNDA. A pioneira da música experimental Pauline Oliveros previu como uma abordagem sensorial da música e da audição poderia cultivar o pensamento politicamente dinâmico. Ela passou a vida desenvolvendo uma teoria da escuta profunda, em que há uma distinção entre ouvir e escutar; a primeira é uma consciência superficial do espaço e da temporalidade, e a segunda é um ato de foco imersivo.
Eu pratiquei a escuta profunda com minha playlist, especialmente com Being Here, do inovador da new age Laraaji. É difícil identificar quando Being Here te atinge: na marca de 10 minutos, 15 ou mesmo em seu beatífico final de 25 minutos. Laraaji produz glossolalia aural – detritos melódicos divinos e luminescentes. Ouvindo sua música, sinto um abraço silencioso de sua visão do presente, notas refratando como a luz do sol acariciando as águas do oceano. Não é um simples bálsamo para uma dor incomensurável.
Being Here não é uma demanda para recarregar para a produtividade. Ela me fez esquecer o looping do tempo, me desvencilhar de qualquer tipo de cronologia preditiva – sobre a recuperação de minha mãe, mas também sobre sobreviver a um estado contínuo de dificuldades. Foi uma ruptura insurgente no tempo – um chamado para mergulhar na realidade de um presente catastrófico e me preparar para fazer algo a respeito. •
Paisagens sonoras Em app, paisagens sonoras selecionadas pelo músico John Legend evocam atmosferas relaxantes
Bálsamo “‘Being Here’, do inovador da new age Laraaji, pode ser bálsamo para uma dor imensurável”, diz ouvinte