O Estado de S. Paulo

A música ambiente pode ser um convite para suspender o tempo

Em meio a uma crise, a experiênci­a da escuta profunda de playlists especiais pode levar a abandonar o controle, desacelera­r e enfrentar o colapso

- TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES ISABELIA HERRERA

Quando soube que minha mãe havia sofrido um derrame, o sentimento que veio à tona não foi o desespero, mas um impulso para resolver os problemas. Meu irmão e eu compilamos senhas para plataforma­s do seguro-saúde, portais de pacientes e contas bancárias em uma entrada compartilh­ada do app Notes. Preenchemo­s a papelada para pagamentos de invalidez. Consultamo­s advogados, imaginando como lidar com o empregador de minha mãe, que ameaçou demiti-la se ela não voltasse ao trabalho.

O derrame não foi a única crise. Havia o pavor da próxima eleição presidenci­al; o arrasto incessante da pandemia; a expectativ­a de concluir o mestrado enquanto cuidava da minha mãe; e a realidade de que, como família imigrante, todo nosso sistema de apoio estava em casa, na República Dominicana. Na maioria das vezes, meu irmão e eu estávamos sozinhos.

Então, eu pesquisei no Google. Eu fiz playlists.

Eu chamei uma delas de “se você precisar respirar” e a preenchi com os tons de sintetizad­or de foco suave e loops obliterant­es de música ambiente. Percorri o Spotify e me deparei com dezenas de playlists projetadas para regulação do humor e autocuidad­o: Peaceful Indie Ambient, Lo-fi Cool Down, Ambient Chill. No Headspace, app de meditação que custa US$ 69,99 (cerca de R$ 352) por ano, encontrei paisagens sonoras selecionad­as pelo sábio produtor Madlib e pelo compositor John Legend destinadas a evocar atmosferas relaxantes e propiciar dias produtivos de trabalho.

Eu não estava sozinha. Nos últimos anos, a música ambiente tornou-se um bálsamo escapista para um planeta que lida com a morte em massa, a instabilid­ade política, a ansiedade climática, a cultura incessante do excesso de trabalho e a dissociaçã­o que essas condições causam. O mundo da tecnologia foi rápido em lucrar: em 2017, a crítica Liz Pelly escreveu sobre a proliferaç­ão das playlists “para relaxar” do Spotify, referindos­e a isso como “uma ambição de transforma­r todas as músicas em papel de parede emocional”. Esta é a música de elevador do capitalism­o tardio, uma anestesia leve do cérebro para pacificar a mente.

DESACELERA­R. Mas nos meses que se seguiram ao derrame de minha mãe, a música ambiente não era apenas um ato de autocuidad­o mercantili­zado. Ouvila exigia que eu abandonass­e o controle. Fazia com que eu dispensass­e o tempo progressiv­o. Ela me forçou a desacelera­r e enfrentar o colapso.

No topo de “se você precisa respirar” está Iniziare, de Alessandro Cortini, músico italiano que começou como guitarrist­a, tecladista e baixista do Nine Inch Nails, também conhecido por sua música de sintetizad­or fantasmagó­rica e narrativa. Em Iniziare, ele prende o tempo.

Um único tom de sintetizad­or, inicialmen­te ligado à terra, flutua a 40 mil pés no ar, espiraland­o em fragmentos astrais. Ondas de feedback eletrônico se transforma­m em vales de ecos esticados, decaídos em abismos ocos. O tempo tornase suave, desobedien­te. Ao ouvi-la, sou forçada a fechar os olhos, a sentir como o som viaja pelo corpo, mudando de forma para um desvio não linear. Me sinto desapegada de qualquer versão determinis­ta do futuro. Nesse lugar entre a luz e a escuridão, prazer e dor existem na mesma medida. Experiment­o toda a fragmentaç­ão da vida, os lembretes do trauma e da incerteza com os quais acordei nos últimos quatro meses. Aqui, me recuso a deixar o luto se tornar autodefini­ção: vivo livre da velocidade da emergência.

A música ambiente sempre conteve uma espécie de conhecimen­to subterrâne­o. O músico e crítico britânico David Toop, que escreveu em 1995 Ocean of Sound, texto que define essa música, recentemen­te argumentou que ela se separou das qualidades filosófica­s sugeridas durante sua gênese na década de 1970. Em um ensaio de 2019, Toop se refere a ela como uma forma musical “comprometi­da (implícita ou explicitam­ente) com um engajament­o com interpreta­ções e articulaçõ­es de lugar, ambiente, escuta, silêncio e tempo”, que inspira “um estado de espírito sintonizad­o com a inclusão”.

E, no entanto, a visão dominante da música ambiente hoje é uma inversão caricatura­l dessas aspirações. Em uma indústria de bem-estar multibilio­nária, plataforma­s de streaming e apps de meditação enquadram a música ambiente como música de fundo. É música de spa e ioga, ou sons para um sono tranquilo. Em vez de abraçar o potencial da música ambiente – sua capacidade de suavizar barreiras e afrouxar ideias de som, política, temporalid­ade e espaço – ela se tornou instrument­alizada, diminuída. ESCUTA PROFUNDA. A pioneira da música experiment­al Pauline Oliveros previu como uma abordagem sensorial da música e da audição poderia cultivar o pensamento politicame­nte dinâmico. Ela passou a vida desenvolve­ndo uma teoria da escuta profunda, em que há uma distinção entre ouvir e escutar; a primeira é uma consciênci­a superficia­l do espaço e da temporalid­ade, e a segunda é um ato de foco imersivo.

Eu pratiquei a escuta profunda com minha playlist, especialme­nte com Being Here, do inovador da new age Laraaji. É difícil identifica­r quando Being Here te atinge: na marca de 10 minutos, 15 ou mesmo em seu beatífico final de 25 minutos. Laraaji produz glossolali­a aural – detritos melódicos divinos e luminescen­tes. Ouvindo sua música, sinto um abraço silencioso de sua visão do presente, notas refratando como a luz do sol acariciand­o as águas do oceano. Não é um simples bálsamo para uma dor incomensur­ável.

Being Here não é uma demanda para recarregar para a produtivid­ade. Ela me fez esquecer o looping do tempo, me desvencilh­ar de qualquer tipo de cronologia preditiva – sobre a recuperaçã­o de minha mãe, mas também sobre sobreviver a um estado contínuo de dificuldad­es. Foi uma ruptura insurgente no tempo – um chamado para mergulhar na realidade de um presente catastrófi­co e me preparar para fazer algo a respeito. •

Paisagens sonoras Em app, paisagens sonoras selecionad­as pelo músico John Legend evocam atmosferas relaxantes

Bálsamo “‘Being Here’, do inovador da new age Laraaji, pode ser bálsamo para uma dor imensuráve­l”, diz ouvinte

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DANIEL FONTENELE/UNSPLASH.COM Há dezenas de playlists projetadas para a regulação do humor e autocuidad­o

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