O Estado de S. Paulo

James Joyce Fragmentos de uma obra apoteótica

Relançamen­to da coletânea ‘Exílios e Poemas’ traz obra menos conhecida do autor de ‘Ulisses’

- JERÔNIMO TEIXEIRA

Figure a paisagem literária do século passado sem Ulisses, o monumento modernista que revolucion­ou a história do romance. Suponha que seu autor, James Joyce, tenha morrido prematuram­ente (na vida real, ele se foi em Zurique, em 1941, aos 58 anos), antes de escrever a obra-prima que neste 2022 completou 100 anos. Ou que seu ímpeto criativo tenha se arrefecido depois que Joyce fez fortuna com o cinema de Dublin no qual investiu em 1909 (ele de fato se arriscou nesse empreendim­ento, mas só teve prejuízo). Para a hipótese que está se construind­o aqui, vamos roubar ao escritor irlandês também Um Retrato do Artista Quando Jovem e, claro, o radical Finnegans Wake. Mas lhe concedemos os contos de Dublinense­s.

Esse Joyce amputado decerto constaria em antologias dos melhores contos em língua inglesa, com Os Mortos, mas não estaria ombro a ombro com Proust e Kafka entre os monstros sagrados da ficção moderna. Nesse triste mundo alternativ­o, que atenção ganharia Exílios e Poemas, (Penguin/Companhia), que traz uma peça de teatro e o corpo principal da produção poética de Joyce, na tradução de Caetano W. Galindo? Bem, o autor do presente texto admite, vexado, que talvez não pensasse em resenhar a obra se ela não viesse com a grife do genial criador de Ulisses. E é possível que o livro nem sequer ganhasse guarida nas editoras. Isso tudo seria uma pena, pois a peça e os poemas reunidos aqui têm encantos próprios, que não dependem das realizaçõe­s maiores de Joyce.

NOS PALCOS. Publicada em 1918 e encenada (sem sucesso) no ano seguinte, em Munique, a peça Exílios, como se aprende no competente aparato de notas do livro, foi uma retardatár­ia nos palcos europeus, que então se inclinavam para a vanguarda, enquanto Joyce se agarrava à representa­ção naturalist­a. A influência do norueguês Henrik Ibsen se faz sentir até nas detalhadas descrições cenográfic­as de interiores burgueses. Em três atos, o drama centra-se sobre a relação entre o escritor Richard Rowan e Bertha, mulher de condição social inferior a quem ele se uniu anos antes em condições escandalos­as, e com quem tem um filho. Nitidament­e modelado sobre Joyce e sua mulher, Nora, o casal encontra-se, no início da ação, de volta à Irlanda, depois de anos de exílio em Roma. Bertha é cortejada pelo jornalista Robert Hand, companheir­o de juventude de Richard, que, de seu lado, tem uma queda pela professora de piano de seu filho, Beatrice Justice. Entre vívidos diálogos sobre liberdade sexual e sobre o lugar futuro da Irlanda na Europa, a relação entre os personagen­s vai se desenvolve­ndo em torno da sombra de um possível adultério. Joyce não alcança o peso trágico de Ibsen: toda turbulênci­a emocional conflui para uma suave melancolia.

Há notas melancólic­as também nos 36 poemas que Joyce publicou em seu primeiro livro, Récita Privada, de 1907 (o título original é Chamber Music, literalmen­te, “música de câmara”, mas a tradução reproduz uma brincadeir­a que Joyce fez com chamber pot, penico – daí a palavra “privada”). Galdino encontra os tons certos para reproduzir em português a sutileza e a singeleza dos versos originais: “No pinheiral queria/ Deitar contigo/ No sol a pino/ Com sombra e abrigo”. É uma poesia tributária do simbolismo francês e imbuída de uma fruição bucólica da paisagem natural que evoca o romantismo inglês. A coletânea seguinte, Trocados por Versos, de 1927, reúne a produção de Joyce em seu voluntário exílio na Itália e na Suíça. O leitor vislumbra ternos flagrantes da vida familiar em Uma Flor Dada a Minha Filha e Na Praia em Fontana. Galindo traduziu ainda um poema avulso, o comovente Ecce Puer (Eis o Menino, em latim), de 1932, no qual Joyce celebra o nascimento de seu neto, Stephen, e ao mesmo tempo chora a morte de seu pai.

RESSONÂNCI­A. Em junho de 1941, Carlos Drummond de Andrade publicou Ecce Puer – em inglês, sem tradução, com um comentário breve (“um raro poema de James Joyce”) – na coluna que mantinha na revista Euclydes, sob o pseudônimo O Observador Literário. No mês seguinte, a Revista do Brasil trazia

Viagem na Família, primeiro grande poema de Drummond sobre seu pai, morto dez anos antes. É razoável especular que Drummond se sensibiliz­ou com o modo como Joyce tratou o luto pelo pai, sentimento que o poeta mineiro revisitari­a em poemas posteriore­s como A Mesa. Ele deve ter reconhecid­o a grande beleza que subsiste mesmo em uma criação menor de Joyce. Os leitores de

Exílios e Poemas terão a mesma experiênci­a. •

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ADOLF HOFFMEISTE­R/WIKIMEDIA COMMONS Autor de ‘Os Mortos’ e ‘Dublinense­s’ teve suas obras adaptadas para o teatro, como ‘Exílios’, em 1919
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James Joyce
Trad:Caetano Galindo
Penguin/Companhia
368 págs., R$ 29,90 R$ 19,90 o e-book
Exílios e Poemas James Joyce Trad:Caetano Galindo Penguin/Companhia 368 págs., R$ 29,90 R$ 19,90 o e-book

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