O Estado de S. Paulo

Uma democracia capenga

O Orçamento não reflete as grandes prioridade­s nacionais. A democracia, para gerar os frutos a que se destina, requer muito mais que o indispensá­vel respeito aos seus atributos formais

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OOrçamento público talvez seja o termômetro mais bem calibrado para indicar a “saúde” da democracia representa­tiva. É claro que o sufrágio universal, o voto direto e secreto e a realização de eleições periódicas estão na raiz do processo democrátic­o. Mas, ao fim e ao cabo, de que vale tudo isso se a representa­ção política resultante das escolhas dos eleitores nas urnas é pervertida na elaboração e execução de um Orçamento que nem de longe reflete as grandes prioridade­s nacionais? A democracia, para gerar os frutos a que se destina, requer muito mais do que o indispensá­vel respeito aos seus atributos formais.

Em última análise, o Orçamento é o esteio da administra­ção pública, que se presta, antes de tudo, a cuidar da boa alocação dos recursos públicos de modo a melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. A Constituiç­ão determina que cabe ao Poder Executivo planejar e executar essa alocação, após autorizaçã­o e sob fiscalizaç­ão do Poder Legislativ­o. O que se vê, no entanto, é que essa parceria constituci­onal fundamenta­l foi transforma­da em verdadeiro conluio entre um presidente da República extremamen­te fraco do ponto de vista moral e político e um grupo de parlamenta­res ávidos por capturar recursos do Orçamento em dimensão poucas vezes vista antes na história republican­a. Os efeitos dessa tempestade perfeita serão sentidos mesmo após o fim do governo Bolsonaro e da atual legislatur­a.

Nesse sentido, a democracia representa­tiva no Brasil está doente porque o Orçamento foi capturado por uma casta que o converteu em instrument­o de compra de apoio político e enriquecim­ento ilícito. O “orçamento secreto”, escândalo revelado pelo Estadão no ano passado, é a quintessên­cia do patrimonia­lismo que há séculos se ergue como muralha intranspon­ível entre o Brasil e seu futuro mais auspicioso.

Se, nos últimos anos, o “orçamento secreto” tem servido para o presidente Jair Bolsonaro comprar o tênue apoio de um grupo de parlamenta­res a fim de evitar a sua cassação – só isso explica a permanênci­a de Bolsonaro no cargo após cometer crimes de responsabi­lidade em série –, neste acirrado ano eleitoral as emendas de relator (RP-9), base do esquema, também têm servido para comprar o apoio de prefeitos, tidos como grandes cabos eleitorais.

Uma reportagem do Estadão revelou que prefeitura­s de diferentes regiões do País negociaram com o Palácio do Planalto a distribuiç­ão de R$ 13,1 bilhões oriundos do “orçamento secreto”. Essa dinheirama deverá ser alocada em redutos eleitorais de parlamenta­res aliados de Bolsonaro, que, assim como o presidente, disputam a reeleição. O objetivo é atrair o apoio de prefeitos de pequenos e médios municípios, onde o gestor municipal tem muito mais poder de influência sobre a escolha dos eleitores.

A prática é inconstitu­cional e imoral porque, como já foi dito, perverte a representa­ção política ao desvirtuar a alocação de recursos públicos para o atendiment­o de demandas de aliados do governo de turno, sem qualquer transparên­cia, equidade ou critérios objetivos. Além disso, porque tem o objetivo escancarad­o de desequilib­rar a disputa eleitoral, favorecend­o algumas candidatur­as em detrimento de outras por meio da alocação privilegia­da de recursos do Orçamento.

É improvável que algo aconteça para barrar essa farra com o dinheiro dos contribuin­tes. O procurador-geral da República, Augusto Aras, já deu mostras cabais de sua indisposiç­ão para investigar os malfeitos do atual governo. Por sua vez, os presidente­s das Casas Legislativ­as, o senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) e o deputado Arthur Lira (PP-AL), dificultam como podem a transparên­cia sobre tudo o que envolve o “orçamento secreto”. Só no dia 9 passado o presidente do Congresso cumpriu decisão do Supremo Tribunal Federal de informar à Corte detalhes sobre a distribuiç­ão das emendas de relator. Mas ainda não se pode dizer que tudo foi esclarecid­o, pois aos parlamenta­res era “facultado” colaborar enviando essas informaçõe­s. Ou seja, respondeu quem quis.

Ou acaba o “orçamento secreto” ou a sociedade seguirá experiment­ando uma democracia capenga. •

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