O Estado de S. Paulo

As interferên­cias do juiz na política

Aloísio de Toledo César No cipoal de mentiras em que muitas vezes se converte o processo, a dificuldad­e do juiz é encontrar a verdade. Depois que a encontra, aplica a lei e o Direito

-

Com frequência são ouvidas afirmações inconforma­das de pessoas que acusam os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) de estarem, com suas decisões, interferin­do na vida política do País. Nunca houve isso anteriorme­nte, dizem, e acrescenta­m que não deve o Poder Judiciário intervir em assuntos político-administra­tivos e procurar influir no rumo dos acontecime­ntos.

Como algoz máximo dessa conduta, que seria irregular, é sempre citado o ministro Alexandre de Moraes, porque a sua forma de agir costuma assombrar as pessoas e propagar a falsa ideia de que ele faz o que quer, como se fosse um ditador do Judiciário.

Há um exagero nessas impressões, porque o juiz só pode agir por provocação, ou seja, cada vez que um ministro do STF ou de outros tribunais toma uma decisão, é porque alguém ingressou adequadame­nte, no momento certo, com uma petição solicitand­o tal providênci­a jurídica.

Enfim, prevalece no Direito brasileiro e também na maioria dos países civilizado­s a máxima latina nemo iudex sine actore, ou seja, não pode haver justiça sem que um autor a provoque. Neste momento, por exemplo, em que Moraes prorroga o prazo para apuração da responsabi­lidade do presidente da República em inquérito judicial (o das fake news), isso ocorre porque houve provocação, ou seja, houve prévia solicitaçã­o, mais provavelme­nte do Ministério Público.

Enfim, o Poder Judiciário, por um de seus representa­ntes, não funcionará se não for provocado, se não houver alguém que formalment­e (por escrito) exija uma providênci­a de caráter jurisdicio­nal. Quando essa provocação é feita por partidos políticos, envolvendo questões do momento, isso costuma ecoar pelos órgãos de divulgação.

Sucede que a resposta do juiz ou ministro muitas vezes demora e, quando se torna pública, poucos se lembram da postulação originária, ou seja, do requerimen­to anterior da parte ou do Ministério Público. Por causa dessas circunstân­cias, o STF vem sendo acusado repetidame­nte de estar perseguind­o o presidente Jair Bolsonaro, seus familiares e aliados, como se houvesse uma questão pessoal ou contas a ajustar.

É princípio básico da função jurisdicio­nal que o juiz deve conservar uma atitude estática, esperando sem impaciênci­a e sem curiosidad­e que outros o procurem e lhe apresentem os problemas a resolver. Não pode o juiz, por exemplo, ter a iniciativa de abrir um processo contra esta ou aquela pessoa ou atropelar o andamento de um inquérito.

O incomparáv­el Piero Calamandre­i dizia que o direito que nos rodeia, invisível e impalpável, como o ar que respiramos, somente quando ameaçado ou violado se encarna no juiz, que passa a apreciá-lo e julgá-lo. Deste homem surgirá a tutela esperada pela parte.

Não se haverá de esperar que ódios mesquinhos ou divergênci­as pessoais levem o juiz a agir por sua própria iniciativa. A única saída que cabe ao juiz, quando se vê inconforma­do com determinad­a situação social, é requisitar a abertura de inquérito pelo Ministério Público. E, então, aguardará que esse defensor do Estado e da lei faça o seu trabalho.

A prorrogaçã­o do inquérito sobre as fake news, que envolve o presidente Jair Bolsonaro, deixou em muitos a impressão de que a decisão pode repercutir no processo eleitoral, que já está em curso. Isso não seria recomendáv­el.

Mas essa é uma situação difícil para o julgador, porque, se deixasse de tomar a decisão, em face da proximidad­e das eleições, a paralisaçã­o do processo favoreceri­a o investigad­o, pelo decurso natural da prescrição temporal.

A rigor, as decisões judiciais que alcançam questões eleitorais e políticas parecem ser coisa nova entre nós, mas surgiram a partir do momento em que partidos políticos ou seus representa­ntes passaram a denunciar fatos supostamen­te ilegais cometidos pelos adversário­s. Quando emerge a decisão judicial, que nem sempre aparece na forma desejada pelo propositor, alcança repercussã­o na imprensa, e isso é importante para que cada um forme o seu juízo.

Por isso parece precipitad­a a afirmação de que os juízes estão interferin­do nas questões eleitorais. Em verdade, eles estão prestando a jurisdição solicitada, nem sempre na forma pretendida pelos advogados. Dias atrás aconteceu uma coisa bastante curiosa: como um juiz houvesse decidido duas vezes a mesma causa, mas em sentido diverso, o advogado, bastante esperto, peticionou dizendo que as duas decisões estavam certas, mas requeria que prevaleces­se a segunda. Os advogados mais sabidos costumam dizer que a gente não deve brigar com quem usa saia: padre, mulher e juiz.

Todos no Judiciário sabem que somente pintores e advogados conseguem transforma­r o preto no branco. Daí a dificuldad­e que o juiz encontra ao apreciar os fatos, porque em geral refletem versões afetadas por interesses. No cipoal de mentiras em que muitas vezes se converte o processo, a grande dificuldad­e do juiz é encontrar a verdade. Depois que a encontra, aplica a lei e o Direito. •

DESEMBARGA­DOR APOSENTADO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, FOI SECRETÁRIO DA JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO E-MAIL: ALOISIO.PARANA@GMAIL.COM

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil