O Estado de S. Paulo

Festival exibe cópia nova de ‘Deus e o Diabo’

Clássico que Glauber Rocha dirigiu em 1964 é restaurado e terá destaque em sessão da mostra francesa

- LUIZ CARLOS MERTEN

Em 1964, Paloma Rocha tinha quatro anos quando seu pai, Glauber Rocha, mostrou em Cannes, na competição, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Na França, o filme recebeu outro título, Le Dieu Noir, Le Diable Blanc (O Deus Negro, o Diabo Branco). Aquele foi um ano excepciona­l para o cinema brasileiro, pois havia dois filmes na disputa, o de Glauber e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos. Cannes foi importante para o lançamento internacio­nal da estética da fome do Cinema Novo. O Brasil era uma potência cultural.

Passaram-se 58 anos, tempo necessário para fechar um ciclo. Deus e o Diabo está voltando a Cannes, que começa nesta terça, 17, e aureolado pela fama de clássico. Desta vez, na ausência de seu pai, morto em 1981, Paloma participar­á da sessão do filme em Cannes Classics com Lino Meireles. Os dois conheceram-se no Festival de Brasília.

Conversara­m e o assunto só podia ser Glauber. Falaram sobre como seria maravilhos­o ver a obra de Glauber restaurada em 4 K. A conversa resultou em uma decisão. “Decidimos que íamos restaurar Deus e o Diabo. Nunca vi o filme numa tela grande que comportass­e o seu tamanho para o cinema brasileiro e mundial”, disse Meireles. E sobre a sala Palais em que o filme vai passar, ele confessou estar ansioso.

Aquele foi um ano glorioso para o festival. O grande Fritz Lang presidia o júri, integrado, entre outros, pelos atores Charles Boyer e Geneviève Page e por René Clément. Ao que se conta, o diretor francês que não era tido em grande conta pela nouvelle vague foi quem mais bateu, no júri, para que Glauber fosse premiado. É difícil conter a euforia. A trilha de Sérgio Ricardo e do próprio Glauber é um assombro. “Manuel e Rosa vivia no sertão/trabalhand­o a terra com as própria mão.” E o impactante “Te entrega Corisco/eu não me entrego não!”. Por mais novo que tudo aquilo fosse, Lang e seu júri outorgaram o Grand Prix, equivalent­e à Palma de Ouro, ao musical encantado de Jacques Démy e Michel Legrand, Os Guarda-chuvas do Amor.

Nino Castelnuov­o parte para a guerra na Argélia. Despede-se de Catherine Deneuve na estação. Ela promete, cantando: “Je vous attendrai toujours”. Mas não espera. A jovem Deneuve e Sophia Loren foram as estrelas do festival. Sophia integrava o elenco do épico de Anthony Mann, A Queda do Império Romano, que fez a abertura oficial do evento. Quem viu não esquece a última cena – Sophia, como Lucila, corre pedindo ajuda nas ruas de Roma enquanto, no Senado, o Império está sendo leiloado. O império em transe. Glauber estava lá. Terá visto o Anthony Mann? A estética de Terra em Transe nasce daquela cena. Glauber fez história, mas a sensação veio de Nelson Pereira dos Santos. A morte de Baleia em Vidas Secas provocou comoção. Choveram protestos das associaçõe­s de defesa de animais da França – Nelson teria matado Baleia. Foi preciso trazer a cachorrinh­a, e ela passeou na Croisette como uma estrela.

Estava prenhe. Ganhou sete filhotes.

DEBATE. O restauro de Deus e o Diabo na Terra do Sol será tema de muita conversa. O filme é o único representa­nte do Brasil no 75.º festival. Além do Glauber, Cannes Classics terá, neste ano, uma seleção que já valeria a realização do festival. Cannes já teve uma edição presencial no ano passado. Em 2022, até por se tratar da data redonda 75 anos, promete grandes atrações. Cannes Classics vai mostrar a versão restaurada de La Maman et la Putain, de Jean Eustache, um filme mítico. Mostrará também Sciuscià, de Vittorio De Sica, precursor do neorrealis­mo. Terá homenagens a Paul Newman e Joanne Woodward – uma série realizada por Ethan Hawke – e lembrará Gérard Philippe e Patrick Dewaere.

As atrações não terminam aí. Será possível (re)ver, em versões zero bala, O Processo de Kafka, por Orson Welles, As Pequenas Margaridas, marco da nouvelle vague checa, de Vera Chytilová, Viva la Muerte, do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, e os documentár­ios sobre a Olimpíada de Munique, de 1972, marcada pelo terror – Visions of Eight –, e a de 2020, adiada pela covid-19 para 2021, por Naomi Kawase. Cannes Classics terá muito mais, mas Glauber é visceral, fundamenta­l. Deus e o Diabo ressurgirã­o, com força. •

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‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’, único filme brasileiro no festival, deverá provocar intensos debates

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