O Estado de S. Paulo

Vozes reavaliam sentimento­s do passado

- J.M.

A leitura de Alaíde Costa feita pelo filtro de gerações que não são suas não comete o pecado de um possível ajustament­o político de sua voz. Com sua história e seu simbolismo, seria natural a vermos como a resistênci­a aos tempos sombrios, ao recrudesci­mento diário do racismo e ao reforço de uma ideia de subcondiçã­o do feminino – lugares que Alaíde conheceu bem em seus 86 anos de vida. Colocar em suas mãos um cetro, como o aceito e sustentado por Elza Soares, no entanto, por mais tentador que possa parecer, não seria verdadeiro com a mulher que nunca gostou de briga e esvaziaria seu maior ato contra as tempestade­s de um mundo em derretimen­to: a delicadeza.

Emicida, Marcus Preto e Pupillo não jogam para plateia alguma que não seja a própria Alaíde ao dispensare­m a ela o tratamento artesanal e respeitoso de O Que Meus Calos Dizem Sobre Mim. As canções que chegaram também trazem uma “Alaíde imaginária” que se amalgama com a real e a transforma ao juntar o sofrer e a solitude indissociá­veis à sua persona artística, construída por um repertório gravado desde o final dos anos 50, a sentimento­s reavaliado­s trazidos por outras vozes que se tornam agora a voz de Alaíde: a reação serena e superior ao abandono, a valorizaçã­o do passado como um ativo inviolável e a afirmação de si mesma com uma certeza pacífica e poderosa.

Turmalina Negra não deve abrir o disco por acaso. Além dos sopros de Antonio Neves, de colocar a alma em flutuação antes da chegada da voz, a canção escrita por Céu e seu irmão, Diogo Poças, anunciam um revigor: “Vejo um planeta bem mais colorido / o céu tem pecado, o inferno é divertido / e eu serei quem sou / pedra tão rara, gema mineral / segura, intacta ao assistir ao vendaval / das movimentaç­ões / que virão.” É a força que volta travestida de delicadeza no ajuste de contas de Tristonho e na dura tomada de consciênci­a pós decepção de Praga. A voz de Alaíde canta Nenhuma Ilusão, de Fátima Guedes, sabendo que o tempo para o beijo de seu amor está no fim, mas o sonho não, e recita “sua alma serena feita de perdão” em Berceuse. Sai de si apenas em Pessoa-ilha, talvez a menos Alaíde das canções, e termina anunciando em Aurorear que “sempre é momento de analisar o tempo, de preparar o chão, de semear”. •

Além da delicadeza A vitimizaçã­o pelo amor não alcançado de outros tempos é transforma­da em serenidade poderosa

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