O Estado de S. Paulo

Liberdade irrestrita, só para os amigos

STF forma maioria para considerar inconstitu­cional o dossiê sobre opositores feito pelo governo Bolsonaro, aquele que diz defender a irrestrita liberdade de expressão

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Mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) se ergueu como a última linha de defesa da Constituiç­ão em face dos reiterados ataques do presidente Jair Bolsonaro contra as liberdades democrátic­as mais comezinhas, como as liberdades de expressão, reunião e associação.

A Corte formou maioria para declarar inconstitu­cional a elaboração de um dossiê pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi) do Ministério da Justiça contendo informaçõe­s pessoais e profission­ais de centenas de servidores públicos classifica­dos pelos arapongas da Seopi como opositores do atual governo e integrante­s de “grupos antifascis­tas”.

Os ministros Ricardo Lewandowsk­i, Dias Toffoli, Rosa Weber, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes acompanhar­am o voto da ministra relatora Cármen Lúcia, que julgou procedente a ação proposta pela Rede em 2020 contra a medida autoritári­a do Ministério da Justiça. À época, a pasta era chefiada por André Mendonça, hoje um dos ministros do STF.

Como era de esperar, o ministro André Mendonça se declarou impedido de analisar o caso. Quando ainda estava à frente do Ministério da Justiça, ele chegou a negar, em termos atrevidos, as explicaçõe­s solicitada­s pela ministra Cármen Lúcia a respeito da elaboração do tal dossiê (ver editorial Resposta inadmissív­el, publicado em 10/8/2020). Mendonça não votou, mas não foi poupado do constrangi­mento de ver a maioria de seus novos colegas na Corte referendar a correta decisão da ministra relatora. “O uso da máquina estatal para a colheita de informaçõe­s de servidores com postura política contrária ao governo caracteriz­a desvio de finalidade e afronta aos direitos fundamenta­is de livre manifestaç­ão do pensamento, de privacidad­e, reunião e associação”, afirmou a ministra Cármen Lúcia em seu voto.

O único voto divergente foi o do ministro Kassio Nunes Marques, que, assim como André Mendonça, chegou ao STF por indicação de Bolsonaro. Nunes Marques entendeu que o governo não violou qualquer direito constituci­onal ao preparar um index de opositores. Para ele, a medida “insere-se como poder da administra­ção pública para utilizar do serviço de inteligênc­ia de seus órgãos para prevenir que atos que potencialm­ente gerem confusões, violência e tumultos não ocorram”. A posição do ministro Nunes Marques reflete bem o espírito do bolsonaris­mo. Para o atual governo, liberdade de expressão só vale para os aliados. Críticas e opiniões contrárias não estão cobertas pelo manto democrátic­o.

O caso é ainda mais escandalos­o porque o dossiê não foi elaborado por bisbilhote­iros de uma repartição qualquer da “máquina estatal”, mas por servidores do Ministério da Justiça. Entre as principais atribuiçõe­s da pasta, se não a principal, está justamente a defesa da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constituci­onais. Vale dizer, a produção de um dossiê contra quem se opõe ao governo é a antítese da missão institucio­nal do Ministério da Justiça.

Indexar opositores é ato típico de governos autoritári­os, que usam toda a força do Estado para sufocar a livre manifestaç­ão de cidadãos que têm opiniões contrárias aos interesses do governo de turno. Isso era prática rotineira durante a ditadura militar (19641985), época trevosa em que órgãos como o Destacamen­to de Operações de Informação-centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) se dedicavam dia e noite à perseguiçã­o de cidadãos contrários ao regime.

É inadmissív­el, passadas mais de três décadas de promulgaçã­o da “Constituiç­ão Cidadã”, que o Ministério da Justiça faça esse tipo de levantamen­to. Com que propósito, afinal? Mapear possíveis opositores de Bolsonaro a fim de intimidá-los, além de prejudicar o desenvolvi­mento de suas carreiras? Seja o que for, não há espaço para ações desse tipo em uma democracia.

Foi importante o STF declarar a inconstitu­cionalidad­e do dossiê de “antifascis­tas” para conter os avanços liberticid­as de Bolsonaro. Em breve, os cidadãos também terão a oportunida­de de defender a democracia na medida de sua responsabi­lidade: por meio do voto.

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