O Estado de S. Paulo

‘Wallace era um soberbo criador’, diz tradutor

No livro póstumo ‘O Rei Pálido’, autor americano discute temas essenciais da existência Tradutor também de outro livro de Wallace, ‘Graça Infinita’, Galindo é autor da versão de ‘Ulysses’ que ganhou um Jabuti

- UBIRATAN BRASIL

“Não estamos diante de um livro desenvolvi­do em linha reta, mas várias cenas em geral completas, que viriam a fazer parte de algo maior”

Caetano W. Galindo, tradutor

Até dar cabo da vida, em 2008, quando se enforcou, o escritor americano David Foster Wallace irradiava uma voz obsessiva e, ao mesmo tempo, irônica, carente, genial. Seu romance de estreia, The Broom of the System (1987), despertou a atenção da crítica, que notou seu estilo complexo e arguto. As constantes tentativas de ser brilhante eram uma caracterís­tica que definia sua trajetória e sua arte. E, quando se acreditava que sua obra estava encerrada, o editor Michael Pietsch anunciou que Wallace deixou um livro inacabado.

O Rei Pálido, lançado agora pela Companhia das Letras, é fruto das 250 páginas que o escritor deixou cuidadosam­ente arrumadas em sua mesa e de outras esparsas, tudo organizado por Pietsch e a viúva de Wallace, Karen. Aqui, ele discute temas essenciais da existência, como monotonia, depressão, sentido da vida e valor do trabalho. O romance se passa em uma agência do fisco americano, onde os funcionári­os mergulham em uma morosa rotina, o que permite a Wallace traçar habilmente a pouca humanidade e dignidade ainda existentes na seção.

O tradutor Caetano W. Galindo comenta o entendimen­to do livro póstumo de uma incomparáv­el mente literária.

Parece haver um sentido de urgência no romance especialme­nte quando Wallace trata de questões de identidade e dificuldad­es de comunicaçã­o. Como você encaixaria esse livro na obra e na vida dele?

Essas duas questões são importante­s em toda sua obra. Às vezes, tenho a impressão de que ele ao longo da carreira foi refinando abordagens, técnica e forma (poucos escritores evoluíram tão claramente), mas sempre para abordar um certo núcleo duro de questões que se mantêm de um livro para outro. Ele não usava a literatura para pensar coisas leves, mas como instrument­o de reflexão profunda sobre a vida, a identidade, o sentido de tudo.

A então crítica do NYT, Michiko Kakutani, disse que o romance se parece com a série The Office reescrita com uma lupa por Nicholson Baker.

Vejo muitas similarida­des entre a obra de Ricky Gervais e a de Wallace. Os dois estão interessad­os no tédio, no tempo morto, na delicadeza encontrada em meio à banalidade.

Seria o encontro de mecanismos para suportar o tédio e seus vários efeitos uma das principais ambições do homem hoje, no entender do romance?

Sim. Ou, talvez ainda melhor, a busca pela compreensã­o de que o tédio não é um problema. E, muito especialme­nte, não é “o” problema. O ponto fundamenta­l de o Rei Pálido é justamente a ideia de que passamos a viver em um tempo em que o “não ter o que fazer / não estar sendo entretido (o problema central já de Graça Infinita)” é algo visto não apenas como ruim, mas como apavorante. Wallace queria algo muito zen (no sentido estrito do termo) de pensar na necessidad­e de se fazer as pazes com o silêncio, o vazio, a desocupaçã­o, o “desinteres­sante” da realidade.

Por se tratar de um romance inacabado, ele é mais interessan­te em algumas partes que no todo?

Há fragmentos que parecem ter sido menos desenvolvi­dos, outros que fazem pensar que não chegariam assim ao final do processo. Mas, quando se trata de um prosador da qualidade de Wallace, no miúdo, nada ali é de fato desinteres­sante.

Por que, no romance, as mulheres são mais ridiculari­zadas que os homens, em sua opinião?

Também tive essa impressão em um certo ponto da leitura, mas depois se perdeu um pouco. Fico ainda tentando entender o que poderia estar por trás do aparente sexismo de certas passagens. Wallace nunca me pareceu um autor sexista, mas mais inteligent­e que todos. Suspeito que essa questão e outras vão ter de ficar em suspenso já que nunca vamos ver o romance completado.

E as menções frequentes de suicídio na obra?

Elas já vinham também da obra anterior de Wallace. Ele próprio, hoje sabemos, tinha já passado por uma tentativa de suicídio na juventude, e me parece que ele nunca deixou de considerar o tema filosofica­mente importante (no que, aliás, está longe de se ver isolado entre os romancista­s).

Pelas notas incluídas por Pietsch, é possível acreditar que Wallace tinha planos bem definidos para os personagen­s que, aliás, são bem desenhados, em se tratando de um livro inacabado. O que pensa sobre isso?

Parece que ele estava mesmo no estágio de alimentar os personagen­s e entender suas histórias individuai­s, para depois talvez pensar em um arco, uma trama possível que unisse tudo. É um modus operandi não muito diferente do que ele já tinha empregado em Graça Infinita (onde, aliás, esse arco mais abrangente é talvez a parte menos interessan­te do livro). Ele era àquela altura um soberbo criador de personagen­s e situações, e esse talento se manifesta nos fragmentos do livro de maneira nada “incompleta”. Não estamos diante de um livro desenvolvi­do em linha reta, que começava pelo ABC e de repente parou no L. O que temos ali são várias cenas em geral completas, frequentem­ente fechadas em si mesmas, que depois viriam a fazer parte de algo maior. Temos, portanto, personagen­s plenos em uma história não desenvolvi­da. •

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MARION ETTILINGER David Foster Wallace deixou uma obra pequena, mas aclamada como uma das mais originais dos EUA
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O Rei Pálido Autor: David Foster Wallace Trad. Caetano W. G. Cia. das Letras, 608 págs., R$ 114,90
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