Seguir a lei
Sobre seguir ou não as leis, foi o tema de um seminário numa velha Harvard dos anos 1980. Com foco no Brasil, falamos inclusive da ideia aristocrática-autoritária-elitista (claramente despótica) – mas até hoje popular – de ter “governos fortes”, suficientes para civilizar, europeizar e assim corrigir e curar uma sociedade tida como misturada, caótica, errada e enferma. Ditaduras já haviam ocorrido e acontecia corrente no momento do debate.
O despotismo era um ideal permanente. Como se a nossa história de total integração com Portugal pudesse ser magicamente mudada por meio de decretos. No caso, dos “governos” capazes de “pôr na cadeia” administradores corruptos. O que, aliás, foi feito para ser anulado e, mais ainda, invertido, o que resultou numa polarização patológica e humilhante porque os candidatos foram construídos um em função do outro...
Seria universal a premissa de que a lei é seguida em todos os lugares? Mas como conjugar lei e costume, quando o costume inscrito em nossos hábitos (apadrinhamento, favor, jeitinho, sabe com quem está falando...) colide com a lei escrita por juristas ou são novidades como, nas legislações republicanas “revolucionárias”
de 1889, promulgadas por cima de um estilo de vida de subordinação, de hierarquias opressivas e socialmente indiscutíveis, como foi o caso de um
Brasil nacionalmente dependente do trabalho escravo de negros africanos. Escravização que sustentava um estilo de vida no qual o trabalho mecânico era estigmatizado como castigo, conforme advertiu, no livro Vida no Brasil, Thomas Ewbank, em 1856!
Permeado pelo ideal aristocrático-familístico-palaciano que, com a República, se ampliou e absorveu suas elites debaixo dos controles das simpatias político-sociais (traduzidos no populismo). A “República de 89”, conforme dizia Gilberto Freyre, tudo alterou, menos aquela alteração básica de preparar a sociedade para as suas mudanças.
O resultado tem sido uma República de papel, que até hoje é vitimada por crises com a liberdade econômica sempre controlada pelo “governo” que oscila menos entre “esquerda & direita” e muito mais entre “centro & periferia”. Ou, como dizem os especialistas, entre inchar o Estado com apadrinhados servis ou transformá-lo numa burocracia eficiente e impessoal, deixando de lado os setores produtivos fundamentais.
Escrevo no dia da Abolição da Escravidão, um incrível avanço. Mas reitero que a lei final, realizada gradualmente, como todos os movimentos igualitários brasileiros, não liquidou a servidão nem o racismo estrutural, sem o qual jamais seremos capazes de seguir sem questões a difícil lei da igualdade. •
A lei da Abolição da Escravidão foi um avanço, mas não liquidou a servidão e o racismo estrutural