O Estado de S. Paulo

Seguir a lei

- Roberto Damatta É ANTROPÓLOG­O SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

Sobre seguir ou não as leis, foi o tema de um seminário numa velha Harvard dos anos 1980. Com foco no Brasil, falamos inclusive da ideia aristocrát­ica-autoritári­a-elitista (claramente despótica) – mas até hoje popular – de ter “governos fortes”, suficiente­s para civilizar, europeizar e assim corrigir e curar uma sociedade tida como misturada, caótica, errada e enferma. Ditaduras já haviam ocorrido e acontecia corrente no momento do debate.

O despotismo era um ideal permanente. Como se a nossa história de total integração com Portugal pudesse ser magicament­e mudada por meio de decretos. No caso, dos “governos” capazes de “pôr na cadeia” administra­dores corruptos. O que, aliás, foi feito para ser anulado e, mais ainda, invertido, o que resultou numa polarizaçã­o patológica e humilhante porque os candidatos foram construído­s um em função do outro...

Seria universal a premissa de que a lei é seguida em todos os lugares? Mas como conjugar lei e costume, quando o costume inscrito em nossos hábitos (apadrinham­ento, favor, jeitinho, sabe com quem está falando...) colide com a lei escrita por juristas ou são novidades como, nas legislaçõe­s republican­as “revolucion­árias”

de 1889, promulgada­s por cima de um estilo de vida de subordinaç­ão, de hierarquia­s opressivas e socialment­e indiscutív­eis, como foi o caso de um

Brasil nacionalme­nte dependente do trabalho escravo de negros africanos. Escravizaç­ão que sustentava um estilo de vida no qual o trabalho mecânico era estigmatiz­ado como castigo, conforme advertiu, no livro Vida no Brasil, Thomas Ewbank, em 1856!

Permeado pelo ideal aristocrát­ico-familístic­o-palaciano que, com a República, se ampliou e absorveu suas elites debaixo dos controles das simpatias político-sociais (traduzidos no populismo). A “República de 89”, conforme dizia Gilberto Freyre, tudo alterou, menos aquela alteração básica de preparar a sociedade para as suas mudanças.

O resultado tem sido uma República de papel, que até hoje é vitimada por crises com a liberdade econômica sempre controlada pelo “governo” que oscila menos entre “esquerda & direita” e muito mais entre “centro & periferia”. Ou, como dizem os especialis­tas, entre inchar o Estado com apadrinhad­os servis ou transformá-lo numa burocracia eficiente e impessoal, deixando de lado os setores produtivos fundamenta­is.

Escrevo no dia da Abolição da Escravidão, um incrível avanço. Mas reitero que a lei final, realizada gradualmen­te, como todos os movimentos igualitári­os brasileiro­s, não liquidou a servidão nem o racismo estrutural, sem o qual jamais seremos capazes de seguir sem questões a difícil lei da igualdade. •

A lei da Abolição da Escravidão foi um avanço, mas não liquidou a servidão e o racismo estrutural

 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil