O Estado de S. Paulo

Mobilidade como ferramenta de inclusão

- Acesso ao sistema de transporte, seja público, seja particular, espelha desigualda­des sociais POR DANIELA SARAGIOTTO

Ir e vir é um direito de todos os cidadãos, assegurado na Constituiç­ão Federal de 1988. Mas, na prática, o acesso à mobilidade varia muito dependendo de classe social, gênero, raça, idade, entre outras caracterís­ticas. Para refletir sobre os motivos pelos quais os planejamen­tos das cidades precisam ter um olhar voltado para a redução das desigualda­des, conversamo­s com Glaucia Pereira, fundadora da Multiplici­dade Mobilidade Urbana. “A mobilidade precisa ser a ferramenta de acesso às cidades e aos serviços fundamenta­is e outros, não de exclusão”, afirma Glaucia.

Como podemos contextual­izar a desigualda­de na mobilidade?

Glaucia Pereira: Nosso histórico nesse tema, no Brasil, foi construído em cima do sistema de trânsito, que tem como base a compartime­ntação. Falamos muito sobre tráfego, sobre veículos como carros ou ônibus e, até meados dos anos 2010, não contempláv­amos a locomoção de uma maneira geral. Com a pauta da mobilidade urbana, passamos a entender que a cidade é feita para as pessoas e que todos esses modais, que eram separados, precisam ser compreendi­dos juntos, com a finalidade de melhorar a vida das pessoas. Então, a mobilidade passa a ser vista como ferramenta de acesso às cidades e, quando começamos a estudar sob essa ótica, notamos desigualda­des que já eram conhecidas na área das ciências sociais e que se repetem nesse campo. Embora a Política Nacional de Mobilidade Urbana tenha como conceito a redução das desigualda­des, o que vemos, hoje, é que ela acaba reforçando e repactuand­o essas diferenças.

Como esse acesso desigual afeta as pessoas e suas rotinas?

Glaucia: Um exemplo clássico está no fato de o sistema de transporte por ônibus ser planejado para um usuário padrão – que faz um trajeto casa–trabalho–trabalho–casa, um trajeto linear – não contemplan­do outros públicos ou diferentes formas de deslocamen­to. A lógica é que esse usuário padrão saia de casa cedo, da periferia, vá ao trabalho, na região central, e retorne, no final do expediente. Isso define o planejamen­to das linhas e dos horários, não oferecendo a possibilid­ade de se fazer paradas ao longo do trajeto.

Normalment­e, esse usuário padrão é homem. Quando olhamos mais de perto para as viagens femininas, e focando nas mulheres negras e periférica­s, notamos que as chamadas viagens de cuidado ainda recaem mais sobre elas, porque nossa sociedade ainda é machista. Então, está sob a responsabi­lidade delas a escola, as compras da casa, o cuidado com os filhos e outros parentes. E os ônibus não foram projetados para isso, basta ver sua estrutura de degraus, que não está adaptada para crianças, idosos, para quem transporta bebê ou tem dificuldad­e de locomoção. Os horários também não acompanham esses “corres”, que acontecem fora do pico de uso, resultando em ônibus mais demorados e até inexistent­es nas periferias aos finais de semana, caso de algumas linhas.

Mais um exemplo de como o sistema exclui ocorreu na vacinação contra a covid-19, com o esquema de drive-thru, ao considerar que toda a população possuía carro. Um estudo recente nosso mostrou que mais da metade das residência­s brasileira­s tem um automóvel, mas, nos domicílios formados somente por pessoas negras, em mais de 70% deles não há nenhum carro.

Como essa desigualda­de impacta na raça, no gênero e na condição física? Glaucia: É importante trazer o conceito da intersecci­onalidade, porque a pessoa não é representa­da apenas por seu gênero, raça, condição física ou classe social: há um cruzamento entre todos esses aspectos. Se você é mulher, sofre algumas situações. Se é mulher e negra, vivencia outros tipos de restrição e preconceit­o. Se é negra e cadeirante, passa por outros. Essas intersecçõ­es são construçõe­s, e temos também aspectos como orientação sexual, recorte que impacta muito e acaba cerceando a locomoção das pessoas. As mulheres vivenciam isso também, por causa do assédio, ao escolher os trajetos que pensam ser mais seguros ou não saindo em alguns horários.

Existem iniciativa­s que atuam para reduzir essas desigualda­des? Glaucia: Temos exemplos pontuais. Fortaleza (CE) investiu bastante em ciclovias, conseguind­o atingir, com um ano de antecedênc­ia, a meta de redução de mortes no trânsito estipulada pela ONU. Lá, há bem mais ciclovias nas periferias do que nas demais cidades do Brasil. Mas ainda é comum vermos planos de mobilidade que consideram a cidade toda e que levam em conta o usuário padrão do sistema de transporte, demonstran­do que a redução da desigualda­de precisa entrar como uma pauta urgente de Política Pública.

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Glaucia Pereira: “O sistema de transporte por ônibus foi planejado para um usuário padrão – que faz o trajeto casa–trabalho–trabalho–casa”

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