O Estado de S. Paulo

O resgate da diplomacia

Mesmo degradado por lulopetism­o e bolsonaris­mo, patrimônio diplomátic­o está à disposição de cidadãos para defender e alicerçar interesses do País na construção da nova ordem global

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Anecessida­de é a mãe da invenção. Um século antes dos teóricos das relações internacio­nais arquitetar­em o conceito de soft power,o Barão do Rio Branco – consciente de que nossa Nação foi erguida na periferia do mundo por colonizado­res da periferia da Europa mesclados a povos periférico­s da América e da África, e de que seu lugar no mundo não seria definido por seu poderio bélico ou econômico – fundou os pilares da diplomacia republican­a no “poder inteligent­e”: a paz e a prosperida­de como fim; o Direito como base; a negociação, a persuasão, o comediment­o, o apreço às organizaçõ­es multilater­ais e à colaboraçã­o internacio­nal como meios.

Com essas “armas” a República traduziu necessidad­es internas em possibilid­ades externas, garantindo a integridad­e do território, construind­o pontes comerciais e cooperando para uma ordem global baseada em regras. Com a arte do consenso, Rio Branco consolidou nossas fronteiras e mais tarde Juscelino Kubitschek, por exemplo, aproveitou brechas na bipolarida­de Leste-oeste.

Esses ideais foram corporific­ados no Itamaraty e consagrado­s na Constituiç­ão. Os quadros rigorosame­nte selecionad­os e formados do Itamaraty são modelo de excelência para o serviço público por sua competênci­a e credibilid­ade. Sua tradição universali­sta e pragmática de não intervençã­o em outros Estados, observânci­a dos tratados e condução técnica, isenta e não dogmática dos interesses nacionais foi cristaliza­da nos princípios constituci­onais da adesão aos valores da democracia, da autodeterm­inação dos povos, da solução pacífica de conflitos e da cooperação para o progresso humano. Com eles, FHC se valeu das políticas domésticas de consolidaç­ão da democracia, estabilida­de da moeda, responsabi­lidade fiscal, abertura econômica e respeito aos direitos humanos para elevar o País a um novo patamar no palco global.

Esse patrimônio foi dilapidado pelo lulopetism­o e o bolsonaris­mo, que – excetuado o hiato de Michel Temer – governaram o País nos últimos 20 anos e são favoritos a governá-lo por mais 4. Pretextand­o “autenticid­ade”, Lula da Silva e Jair Bolsonaro deram azo a vulgaridad­es e indiscriçõ­es que conspurcar­am a liturgia do cargo. Mais do que afinidades de estilo, há as de método: ambos submeteram interesses de Estado aos de governo e os de governo aos de suas facções. Seu voluntaris­mo e sectarismo – particular­mente evidentes no alinhament­o de Bolsonaro ao reacionari­smo norte-americano e no de Lula a toda forma de “antiameric­anismo” – produziram, com feições diversas, o mesmo resultado: isolamento e desperdíci­o de oportunida­des.

Com instrument­os retrógrado­s, forjados em mentalidad­es esquerdist­as e direitista­s dos anos 60 e 70, nem Lula nem Bolsonaro têm condições de orientar o País em meio às metamorfos­es de um mundo multipolar­izado em plena revolução digital. Nem por isso o Brasil deixa de ser uma democracia multiétnic­a de dimensões continenta­is, que têm as chaves para equacionar o tripé – alimentar, energético e ambiental – no qual repousam os anseios da humanidade por um desenvolvi­mento sustentáve­l.

Se não se pode esperar que a energia e a lucidez para defender os interesses do País e restaurar seu protagonis­mo na Torre de Babel contemporâ­nea venham do centro do poder, do Planalto, elas devem vir de sua periferia. Amparados pelos municípios, onde a cidadania viceja, e Estados, que gerem os temas de interesse da população (saúde, transporte, segurança, educação), a Academia pode construir pontes culturais com as nações, assim como o empresaria­do pode construir pontes comerciais. Essas forças difusas devem convergir no Congresso, a quem cabe defender a independên­cia e a excelência do Itamaraty e fiscalizar operações com recursos nacionais.

Nutrindo-se da herança de Rio Branco – da fé na “força do Direito”, da “cordura, desinteres­se e amor da justiça” entranhado­s na tradição diplomátic­a nacional –, esses agentes podem contribuir para reintroduz­ir o Brasil “na esfera das grandes amizades internacio­nais a que tem direito pela aspiração de sua cultura, pelo prestígio de sua grandeza territoria­l e pela força de sua população”. •

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