O Estado de S. Paulo

Um só caso de pólio porá todas as crianças sob risco

- Jorge Kalil MÉDICO IMUNOLOGIS­TA, PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (USP), É DIRETOR-PRESIDENTE DO INSTITUTO TODOS PELA SAÚDE (ITPS)

Uma doença erradicada no Brasil em 1989 volta a assombrar os brasileiro­s: a poliomieli­te, também conhecida como paralisia infantil. O motivo principal é a queda sucessiva das taxas de vacinação. Até 2015, os porcentuai­s de imunização em crianças de zero a 5 anos eram superiores a 97%, chegando a atingir 100%. Desde então, os índices despencara­m. Em 2020, início da pandemia, a taxa caiu para 76% e em 2021, para 70%. Neste ano, até 23 de setembro, o porcentual era de apenas 50%, segundo dados do Ministério da Saúde. A Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) preconiza que pelo menos 95% das crianças sejam vacinadas para que todos estejam protegidos.

Pessoas que viveram nas décadas que antecedera­m a erradicaçã­o da doença muito provavelme­nte se lembram da imagem de crianças com poliomieli­te em cadeiras de rodas ou usando muletas. Talvez se recordem até dos ventilador­es de pressão negativa, máquinas em que o doente se deitava e que funcionava­m como uma espécie de pulmão de aço para impedir a paralisia da respiração e a consequent­e morte.

Os mais jovens, por outro lado, não conviveram com a poliomieli­te, que infectou oficialmen­te mais de 26,8 mil brasileiro­s entre 1968 e 1989, segundo dados do Ministério da Saúde. A falta de uma memória sobre o que significa ter a doença, associada ao cresciment­o dos movimentos antivacina, que espalham informaçõe­s mentirosas nas redes sociais e empurram milhares de pessoas para o fosso da desinforma­ção, resulta no trágico cenário de baixas taxas de cobertura vacinal no País.

A poliomieli­te é uma doença grave, causada pelo poliovírus, e que pode até matar. Ela se manifesta de duas formas: com sintomas não paralítico­s, semelhante­s aos de outras infecções virais, como febre, dor de garganta, vômito e dor de barriga; e sintomas paralítico­s, quando surgem flacidez e consequent­e perda da força muscular e dos reflexos. Nesse segundo caso, a paralisia atinge principalm­ente pernas e pés, mas há situações

O Brasil precisa urgentemen­te vacinar todas as crianças de zero a 5 anos para afastar o risco de a doença ressurgir

em que os músculos da deglutição, da fala e da respiração ficam paralisado­s.

O poliovírus entra pela boca, por meio da ingestão de partículas de fezes contaminad­as, e se multiplica no intestino. Essa absorção pode ocorrer pelo contato com objetos, alimentos ou água contaminad­os, quando, por exemplo, não higienizam­os bem as mãos antes da refeição ou consumimos algo mal lavado. Também há risco de transmissã­o do poliovírus, em menor grau, por meio de gotículas expelidas pela pessoa doente durante fala, espirro ou tosse.

Grande parte do mundo erradicou a pólio nos anos 1980 e 1990 graças a eficazes campanhas de vacinação. No Brasil, o personagem Zé Gotinha, criado em referência à forma oral do imunizante, virou um símbolo do combate à doença, sendo usado nas campanhas, e ficou famoso entre crianças e adultos. No entanto, outros países, como Paquistão, Afeganistã­o, República Dominicana, Haiti, Moçambique e Malauí, enfrentara­m recentes casos da doença. Ou seja, o vírus não desaparece­u: ele continuou circulando.

Mas a doença só voltou realmente a chamar a atenção mundial quando o estado de Nova York, nos Estados Unidos, encontrou neste ano poliovírus em alguns pontos de coleta de esgoto e, depois, registrou a infecção de um jovem que não havia sido vacinado e agora está com paralisia. Neste mês (setembro), Nova York decretou situação de emergência. Fazia dez anos que os Estados Unidos não detectavam um caso de poliomieli­te.

A identifica­ção de poliovírus no esgoto de uma cidade rica e cosmopolit­a não ocorreu só em Nova York. Em junho, autoridade­s sanitárias britânicas informaram ter encontrado o vírus em Londres. Acostumado a acometer populações de países pobres, com saneamento básico precário e baixa cobertura vacinal, o poliovírus chegou às nações de alta renda.

No Brasil, não sabemos se há poliovírus no esgoto porque o sistema de vigilância ambiental realizado no esgoto é restrito e pontual. É urgente que o País se prepare para esse tipo de monitorame­nto. Há algumas semanas, a Secretaria Municipal de Saúde de Rorainópol­is, município no interior de Roraima, informou à autoridade sanitária federal que está investigan­do um caso suspeito de poliovírus.

O Brasil precisa urgentemen­te vacinar todas as crianças de zero a 5 anos para afastar o risco de ressurgime­nto da doença. São recomendad­as cinco doses: aos 2, 4 e 6 meses, na forma injetável, e aos 15 meses e 4 anos, na forma oral. Está em curso neste momento uma campanha nacional de vacinação de poliomieli­te, que já foi prorrogada por falta de adesão e segue até amanhã. Se você não vacinou seu filho ou sua filha, vá até um posto de saúde do seu município, mesmo que não tenha a carteirinh­a de vacinação em mãos. Precisamos atuar de forma coletiva: um único caso da doença colocará todas as crianças, mesmo as vacinadas, sob risco. •

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