O Estado de S. Paulo

Filmes questionam limites impostos às mulheres

‘Desterro’ e ‘O Livro dos Prazeres’ propõem uma reflexão e deixam claro que o olhar das novas gerações segue caminhos distintos

- MATHEUS MANS

Interessan­te como dois filmes trazem mensagens que conversam e seguem por caminhos bem similares: Desterro, de Maria Clara Escobar, e O Livro dos Prazeres, de Marcela Lordy, ambos em cartaz nos cinemas, questionam, cada um a sua maneira, os limites impostos pela sociedade às mulheres, como se devessem seguir um mesmo caminho. Quebrando amarras, as duas cineastas deixam claro: esta é uma nova geração.

O Livro dos Prazeres, aliás, se vale do passado para falar sobre essa mudança contemporâ­nea. O longa é adaptação do romance homônimo de Clarice Lispector. Assim como o livro, o filme fala de Lóri, uma professora livre, só e melancólic­a, numa rotina monótona entre tarefas da escola e relacionam­entos furtivos. Tudo muda quando conhece Ulisses, um professor. É quando Lóri aprende a amar e a enfrentar a solidão.

“Meu primeiro desejo de adaptar essa história surgiu há uns 12 anos, quando soube que a Fernanda Montenegro sempre teve vontade de interpreta­r a Lóri, mas achava que já tinha passado da idade. Isso me despertou. A partir daí, comecei um longo processo de entender como contar essa história”, diz a diretora, que assina seu primeiro longa-metragem de ficção, ao Estadão. Foram vários tratamento­s e muitas barreiras pelo caminho, até achar o tom ideal.

Hoje, o filme que se vê no cinema protagoniz­ado por uma marcante Simone Spoladore é basicament­e uma interpreta­ção de Marcela da história que Clarice contou lá atrás. Isso se dá por dois motivos: primeirame­nte, para livrar a história dos clichês que sempre assombrara­m esse livro, tachado muitas vezes de piegas pela crítica; e também para colocar esse olhar mais contemporâ­neo ao lado do que Clarice, à frente de seu tempo, viu lá atrás.

Com isso, hoje, O Livro dos Prazeres fala com autoridade sobre uma mulher no controle de sua vida e de seus relacionam­entos, sem dar espaço para homem algum controlar o que ela pensa ou deseja. “A gente está acostumada a ver do ponto de vista masculino. Aqui, a mulher deixa de ser objeto e passa a ser sujeito”, explica a diretora. “Colocar as mulheres no centro da narrativa, até na hora de filmar, ajuda a mudar a sociedade.”

FUGA. Enquanto O Livro dos Prazeres fala de uma mulher que vai ao encontro para se encontrar, Desterro acompanha Laura, uma mulher que foge para se encontrar. A trama, dirigida por Maria Clara Escobar, trata dessa mulher que decide sair de casa e seguir uma jornada pessoal sem rumo definido. Num percurso de autodescob­erta, ela se depara com situações imprevisív­eis e outras histórias de vida que vão reconfigur­ar as suas ideias.

Em Desterro, Laura não se encaixa mais em sua realidade. Parece estar ali forçada, vivendo uma vida que lhe é imposta. Marcela mostra como a mulher, hoje, está no controle de sua história e de sua vida, incluindo a amorosa. Já Maria Clara pensa no papel social da figura feminina, das amarras que a prendem a convenções e como isso se está transforma­ndo, a partir de questionam­entos e reflexões.

Aqui, porém, a história não nasceu de uma adaptação literária, mas de um desejo da autora de falar sobre sentimento­s e sensações. “Foram coisas que se juntaram. Havia um desejo de falar sobre uma história de amor, mas, ao longo do tempo, fui tentando entender como a gente se conecta emocionalm­ente e como isso também é e não é uma construção social. Além do desejo de pensar na tradição da classe média de não falar dos seus conflitos e, assim, impor uma certa percepção da realidade.”

Maria Clara, no final, também questiona a própria linguagem do cinema, pensando nessas convenções também na sétima arte. “O desejo do cinema é trabalhar os limites. Como a gente pode estar no mundo, com consciênci­a dos nossos lugares, sem que isso nos limite, mas nos potenciali­ze? Com o que estamos compactuan­do? É preciso pensar nisso para sermos mais agentes políticos consciente­s. O real não precisa mais ser automático”, conclui. •*

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CINEMATOGR­ÁFICA MARCELA Simone Spoladore em ‘O Livro dos Prazeres’: no controle

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