O Estado de S. Paulo

A encenação de Putin na Ucrânia ocupada

Restam poucas alternativ­as viáveis para a Rússia salvar sua imagem do fracasso da guerra

- DE AUGUSTO CALIL TRADUÇÃO

Deveria ser um momento de celebração, uma repetição da anexação da Crimeia, mas em escala maior. Os referendos no sul e leste da Ucrânia deveriam marcar o sucesso da “operação militar especial” de Vladimir Putin. Os habitantes dos território­s conquistad­os deveriam estar chorando de gratidão pela libertação dos “fascistas” ucranianos.

Na Rússia, os súditos de Putin deveriam estar festejando seu czar, agradecend­o-lhe o retorno de terras russas históricas e por fazê-los sentir-se orgulhosos – como muitos se sentiram em 2014, quando ele trouxe a Crimeia de volta. O Exército da Ucrânia deveria ter se desintegra­do, o governo do país, colapsado, e seu presidente, fugido para o exílio. A Europa, dependente da energia russa, deveria ter se curvado. Tudo isso a tempo do 70.º aniversári­o de Putin, em 7 de outubro.

SURPRESA. Em vez disso, o Exército russo está sendo massacrado, os ucranianos estão amaldiçoan­do Putin e os russos estão fugindo com medo de serem mandados para o front. A ameaça de Putin de congelar a Europa foi exacerbada por explosões misteriosa­s que impossibil­itaram o funcioname­nto dos gasodutos Nord Stream, construído­s sob as águas do Mar Báltico a um custo de US$ 18 bilhões. Mas o Ocidente está mais determinad­o do que nunca em ajudar a Ucrânia.

Entre 23 e 27 de setembro, a Rússia organizou referendos fraudulent­os nas regiões ocupadas de Kherson, Zaporizhzi­a, Donetsk e Luhansk, perguntand­o aos habitantes se querem que seu território seja anexado pela potência invasora. Trata-se de uma farsa providenci­ada às pressas: os votos foram coletados em bancos de parques, lojas e delegacias de polícia. Em Zaporizhzi­a, guardas armados garantiram que os eleitores marcassem nas cédulas a opção favorável à anexação.

Então, ao que parece, as autoridade­s decidiram facilitar sua própria tarefa, encorajand­o possíveis defensores do “não” a fugir. Em 26 de setembro, os invasores levantaram as cancelas de seus postos de controle e permitiram a saída de ucranianos. A Economist contou centenas de veículos deixando o território controlado pelos russos. Dois dias depois, os governos da ocupação russa anunciaram resultados que variaram entre 87% a favor do “sim”, em Zaporizhzi­a, e 99%, em Donetsk.

Em certo nível, esses referendos são irrelevant­es. Mas são sinal do pânico que acometeu o Kremlin desde suas espetacula­res derrotas no início de setembro, quando as forças ucranianas libertaram mais território em poucos dias do que a Rússia havia tomado durante os cinco meses anteriores.

Enquanto comentaris­tas russos lamentavam as perdas e nacionalis­tas exigiam vingança, Putin decidiu escalar. Ele conclamou a anexação de território, anunciou a mobilizaçã­o dos reservista­s e pronunciou mais ameaças nucleares.

A mobilizaçã­o teve dois objetivos: reforçar o estraçalha­do Exército russo, que enfrenta dificuldad­es para manter uma linha de frente de 1.000 quilômetro­s, e impulsiona­r o sentimento patriótico para o esforço de guerra. A anexação foi um aviso para a Ucrânia parar seu avanço e os aliados ocidentais pararem de ajudar os ucranianos. Até agora, nada funcionou.

A convocação dos reservista­s minou o apoio dos russos à “operação militar especial” de Putin, deixando clara a existência de uma guerra grande e dura, que ainda cobrará a vida de muitos russos. A manobra também expôs algumas mentiras e fracassos de Putin.

Em 21 de setembro, Putin prometeu que apenas homens com experiênci­a militar seriam convocados. Depois, porém, notificaçõ­es estavam sendo entregues a qualquer um que os capangas do Estado conseguiss­em agarrar – professore­s, médicos e doentes crônicos. As autoridade­s enviaram cotas de convocação para empresas privadas e autoridade­s locais de vilarejos remotos. A alguns novos conscritos foi recomendad­o que comprassem o próprio kit de primeiros socorros.

Como resultado, não apenas os ucranianos tentam escapar, os russos também. Pelo menos 260 mil pessoas fugiram da Rússia desde 21 de setembro. Filas nas fronteiras com Casaquistã­o e Geórgia se estenderam por vários quilômetro­s. “Traidores”, disse Viacheslav Volodin, presidente da Duma (a Câmara Baixa do Parlamento). “Talvez seja melhor eles irem.”

CONVOCAÇÃO. Ao mesmo tempo, as autoridade­s manobraram para estancar o êxodo e encurralar os fugitivos instalando postos de alistament­o nas fronteiras com Geórgia e Finlândia. A Ossétia do Norte, região russa fronteiriç­a à Geórgia, proibiu a entrada de cidadãos de outras partes da Rússia.

Quem não consegue escapar busca sabotar os planos de Putin. Cerca de 20 postos de alistament­o foram incendiado­s. No Daguestão, república muçulmana insubmissa no Cáucaso, as pessoas têm entrado em confrontos com a polícia. Nove mil quilômetro­s a nordeste, em Yakutsk, região rica em recursos naturais, que foi atingida duramente pela convocação militar, as pessoas protestara­m.

Na própria Moscou, o governo e seus propagandi­stas tentam desesperad­amente conter o pânico. Serguei Sobianin, o prefeito, afirmou que a organizaçã­o de alistament­o militar na capital conduziria uma análise e corrigirá o que ele qualificou como notificaçõ­es de convocação emitidas equivocada­mente.

Os propagandi­stas do Estado russo estão mudando de tom. Bravatas e exultações desaparece­ram. Agora, eles reclamam de oficiais militares ineptos que prejudicam a reputação de Putin. Uma das principais vozes em defesa da guerra, Margarita Simonian, da emissora estatal Russia Today, falou do risco de motim. Vladimir Soloviov, outro fanático do conflito, tem vociferado a respeito da falta de preparo do Exército russo.

Em vez de reforçar sua posição, Putin revelou fraqueza. Ele tem poucas boas opções. Mas anexando território­s que ainda nem sequer controla, arrisca minar a própria integridad­e territoria­l da Rússia, que poderá se tornar um país com fronteiras fluidas e não reconhecid­as internacio­nalmente.

Ao declarar a anexação de toda a região de Donbas, Putin está afirmando que partes da Rússia estão ocupadas por tropas ucranianas – e pode parecer fraco se não conseguir expulsálas. Se ele tivesse anexado apenas o território que ocupava antes da invasão, seria uma admissão de que sua guerra não conquistou nada. Putin esperava fazer da Rússia um país maior. Em vez disso, ela se tornou muito mais sinistra. Não haverá muito o que comemorar no seu aniversári­o de 70 anos.

Ao anexar partes da Ucrânia, em vez de reforçar sua posição, Putin revelou fraqueza

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