O Estado de S. Paulo

Sem presos, massacre do Carandiru faz 30 anos

Ação policial na Casa de Detenção em 1992 deixou 111 mortos. Mesmo com condenação do júri, agentes ainda não começaram a cumprir a pena pelo caso

- RAYSSA MOTTA ÍTALO LO RE

O massacre do Carandiru completa hoje 30 anos sem que os 74 policiais militares denunciado­s pelo assassinat­o de 111 presos após uma rebelião no pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo, na zona norte da capial, tenham começado a cumprir sentenças. Eles foram condenados a penas que chegam a 624 anos de prisão, mas o desfecho do processo tem sido atrasado por sucessivos recursos.

A condenação pelo Tribunal do Júri em 2013 e 2014 não significou a prisão dos PMs. Eles receberam autorizaçã­o para aguardar a conclusão do processo em liberdade. Depois, o caso tem sido marcado por reviravolt­as judiciais. O Tribunal de Justiça de São Paulo chegou a anular as condenaçõe­s, o que acabou revertido em instâncias superiores. A discussão agora é sobre a dosimetria das penas, que a defesa considera excessivas. As sentenças só devem começar a ser cumpridas quando o caso transitar em julgado (quando não há mais margem para recurso).

“A condenação não se discute mais: eles estão condenados pelo júri”, afirma o promotor de Justiça Márcio Friggi, que assumiu o caso em 2013. “Agora o caso volta para o Tribunal de São Paulo, que vai apreciar os pedidos relacionad­os à pena. Infelizmen­te, isso vai gerar uma nova decisão e deste acórdão podem ser interposto­s novos recursos, tanto especial para o STJ quanto extraordin­ário para o Supremo. Para transitar em julgado mesmo, vai levar um tempo.”

Há ainda a chance de o caso prescrever, o que significa que o Estado perde o direito de punir os responsáve­is pelo massacre. A condenação reinicia a contagem da prescrição, mas o risco é maior para réus com mais de 70 anos. Isso porque o prazo prescricio­nal, que para os crimes de homicídio é de 20 anos, cai pela metade.

LABIRINTO. Na avaliação do sociólogo e pesquisado­r do Núcleo de Estudos da Violência da USP Gustavo Higa, o massacre do Carandiru “é um labirinto jurídico”. “Nunca foi esclarecid­o publicamen­te quem deu a ordem para a invasão que resultou no massacre”, afirma. Ele reforça que os avanços também foram lentos em relação às indenizaçõ­es.

Em paralelo, a Câmara dos Deputados recebeu um projeto de lei para anistiar os policiais envolvidos no massacre. O texto de autoria do deputado bolsonaris­ta Capitão Augusto (PL-SP), líder da bancada da bala, foi aprovado no mês passado pela Comissão de Segurança Pública e deve passar agora pela Comissão de Constituiç­ão e Justiça, última etapa antes do plenário.

O projeto diz que “não é justo” condenar policiais que “tiveram a dura missão de arriscar as próprias vidas em defesa da sociedade ao agirem com os meios necessário­s para a contenção de uma violenta rebelião”. O Estadão buscou contato com a advogada dos policiais que respondem ao processo, Ieda Ribeiro de Souza, sem retorno. Ela informou ao Supremo Tribunal Federal (STF) no mês passado que estava deixando o caso por “motivos de foro íntimo”. O ministro Luís Roberto Barroso, relator, mandou a advogada comprovar que os PMs foram comunicado­s da renúncia. A reportagem não localizou a nova defesa. Ao Tribunal do Júri, os agentes sustentara­m inocência.

DESESPERO. “É aquele desespero que é difícil de esquecer, muito difícil de esquecer”, diz o educador cultural Claudio Cruz, de 65 anos, sobre o massacre. Conhecido como Kric, ele chegou à Casa de Detenção no fim dos anos 1970 e cumpriu pena de 28 anos por roubo e homicídio. “Muito tiro e grito, tiro e grito…”, relembra.

“A gente ficou naquela: ‘Iisso é barulho mesmo ou é morte?’ Até que alguém subiu na janela para dizer que estavam matando pessoas. Aí o desespero foi total”, relembra ele. “São 30 anos falando disso, mas a gente não deve, de forma nenhuma, deixar de falar”, acrescento­u.

Sobreviven­te ‘É aquele desespero que é difícil de esquecer, muito difícil de esquecer’, diz educador cultural

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WERTHER SANTANA / ESTADÃO ‘Não devemos deixar de falar (do massacre)’, afirma Claudio Cruz

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