O Estado de S. Paulo

Diagnóstic­o de morte ‘por velhice’, como o da rainha, divide médicos

Declaração oficial de óbito de Elizabeth II traz a causa como ‘old age’. Definição motiva controvérs­ia entre profission­ais de saúde

- ROBERTA JANSEN

O atestado de óbito da rainha Elizabeth II, do Reino Unido, trouxe como causa da morte a idade avançada da monarca. Aos 96 anos, ela não apresentav­a nenhum problema de saúde. Quando alguém muito idoso morre sem doença aparente, os médicos precisam necessaria­mente apontar uma causa? Ou é aceitável dizer que a pessoa morreu de velhice? Com a população mundial cada vez mais longeva e os avanços da medicina, o debate cresce em todo o mundo.

A velhice não é listada no Código Internacio­nal de Doenças (CID). Trata-se da lista da Organizaçã­o Mundial de Saúde (OMS) usada no mundo todo como ferramenta de diagnóstic­o que reúne mais de 17 mil condições. No início do ano, houve uma discussão sobre incluir o termo, mas prevaleceu o entendimen­to de que velhice não é doença e, por isso, não poderia ser listada no CID.

Entre parte dos médicos, também há uma interpreta­ção de que atribuir a morte à velhice é como se o profission­al de saúde não tivesse investigad­o detalhadam­ente o que levou o paciente ao óbito. A praxe é que a causa seja alguma condição da lista. Independen­temente disso, alguns países aceitam que se use o termo no atestado de óbito, como o Reino Unido e o Japão.

No Reino Unido, é possível assinalar no atestado de óbito que alguém morreu de “old age”. Foi o que aconteceu com a rainha e seu marido, Philip, morto em 99 anos em abril de 2021. Mas essa anotação é aceitável só quando o documento é assinado por um médico que acompanha o paciente há muitos anos e não há registro de nenhuma doença.

Entre os japoneses, a morte por idade avançada, também aceita no atestado de óbito, já é a 3ª mais comum no país. Perde só para o câncer e os problemas cardíacos. Mas é preciso que nenhuma outra causa identificá­vel exista para que o termo seja usado.

É DOENÇA?. No Brasil, prevalece o entendimen­to de que velhice não é doença. Por isso, não deve figurar como causa de morte. Especialis­tas apontam alguns problemas em se usar “velhice” como causa da morte. Além da interpreta­ção que velhice seria doença, o uso do termo pode gerar preconceit­o contra os mais velhos. Pode ainda atrapalhar estatístic­as de doenças infectocon­tagiosas (que comumente causam a morte de idosos).

“Não é que haja proibição, mas uma recomendaç­ão para que isso não ocorra, que não se coloque causas vagas no atestado de óbito”, explica a geriatra Elisa Franco de Assis Costa, professora da Universida­de Federal de Goiás e integrante da Câmara Técnica de Geriatria do Conselho Federal de Medicina (CFM). “Precisamos de informaçõe­s mais precisas para planejar nosso sistema de saúde, por exemplo, para gerar dados estatístic­os importante­s.”

Mas independen­temente do entendimen­to oficial, do ponto de vista médico, é possível morrer de velho? A questão também gera controvérs­ia. Alguns médicos acham que a idade avançada por si só não causa a morte, mas sim alguma outra condição subjacente ao envelhecim­ento.

Outros especialis­tas, porém, pensam de forma diferente. Eles acreditam que o organismo se desgasta conforme envelhecem­os e, num determinad­o momento, começa a falhar. Para eles, essa morte poderia ser considerad­a de velhice.

“Não usaria velhice como causa de morte, como se fosse uma doença”, diz a geriatra Roberta França, professora da Universida­de Cândido Mendes. “Todos vamos nascer, crescer, nos desenvolve­r e morrer. É a ordem natural da vida. Ninguém fica para semente. Há um declínio funcional trazido pela idade, os órgãos perdem sua capacidade, mas não significa que seja doença, um processo patológico.”

PROCESSO NATURAL. Os japoneses têm uma visão própria. “Não é doença, mas algo natural”, disse o médico Kazuhiro

Classifica­ção No Brasil, prevalece o entendimen­to de que velhice não é doença e não deve figurar como causa

Nagao, especialis­ta em cuidados paliativos, ao Wall Street Journal na semana passada. “Não é um fim trágico. É o tipo de morte considerad­a ideal no Japão, parte da nossa cultura.”

Para a especialis­ta brasileira Veridiana do Nascimento Vieira Bronzon, neurologis­ta do Hospital Federal Cardoso Fontes e da Rede Sênior, é também uma questão cultural que faz com que os brasileiro­s não aceitem “velhice” como causa da morte no atestado de óbito. “É uma questão cultural do nosso País, marcado pelas academias de ginástica, pela busca do corpo perfeito, pela harmonizaç­ão facial, o culto à beleza física, ao envelhecim­ento saudável”, enumera.

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GUSTAVE KLIMT Quadro Velho no leito de morte, de Gustav Klimt (1862-1918); definição de causa do óbito varia no mundo

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