Ataque à irreverência de Vini Jr. expõe a intolerância contra a criatividade no futebol
Árbitros sem critério e complacentes com a violência e craques sob intimidação são alguns dos obstáculos aos atletas talentosos
Drible ou entrada ríspida? Gol seguido de coreografia ou intimidação escancarada? Futebol bailarino ou esquemas baseados na truculência? Diante da intolerância que ganha força nos mais variados segmentos da sociedade, as ameaças direcionadas a Vinícius Júnior pelo estilo irreverente de festejar seus gols elevaram ainda mais a temperatura de um clássico na Espanha que carrega grande dose de rivalidade. No recente jogo em que o Real Madrid venceu o Atlético de Madrid por 2 a 1, o atacante não marcou, mas fez questão de sambar ao lado de Rodrygo no primeiro gol do time merengue. Foi uma resposta às intimidações feitas tanto pelo adversário quanto pela torcida presente ao estádio.
Além do racismo explícito, o episódio abre discussão sobre os rumos que o esporte mais popular do planeta vem seguindo. Em tempos de VAR, câmeras espalhadas nos estádios e a atuação muitas vezes confusa dos juízes, o futebol vem trocando as jogadas de efeito pelo pragmatismo. Regras de conduta são alçadas como pilares num esporte que tem o drible como um dos principais cartões de visita.
Apesar de seu estilo sisudo, bom futebol e irreverência já caminharam harmonicamente sob os cuidados de Emerson Leão, o exigente técnico que, em 2002, foi campeão nacional com o Santos dirigindo os irreverentes Diego e Robinho.
“O Vinícius Júnior tem a liberdade de comemorar seus gols como bem desejar. Não vejo o que ele faz como gozação ou menosprezo. Eu incentivava meus atletas a fazer isso. Na verdade, achei ridículo o que fizeram com o garoto”, afirmou Leão ao Estadão.
A pressão imposta pelos rivais ao seu estilo não deve ser levada tão a sério por Vinícius Júnior, na opinião do treinador. “No futebol sempre existiram jogadores irreverentes. No meu tempo, o César Maluco tirava peruca de repórter na comemoração dos gols. O Vinícius não pode perder a naturalidade”, completou Leão.
Com mais de 900 gols na carreira e uma trajetória marcada por frases de efeito e provocação aos adversários, Dadá Maravilha exaltou a atuação de Vini Jr. e criticou os atletas que só conseguem visibilidade intimidando quem sabe jogar.
“Eu dava nome e falava quantos gols iria fazer antes dos jogos. O Vinícius Júnior mostrou ter coragem. É craque, coisa que eu nunca fui. Só precisa aprender a fazer mais gols como o Dadá. Aí ninguém segura. E se tiver de dançar, que dance, pois futebol é isso. Ainda mais sendo brasileiro.”
DIREITO DE DRIBLAR. Berço de atletas consagrados mundialmente como Pelé, Garrincha (um exímio driblador), Romário, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, o Brasil tem em seu DNA forte relação com o drible e o lance de efeito.
Entre o fim dos anos 1930 e a década de 40 do século passado, Leônidas da Silva assombrou o mundo com a sua acrobática bicicleta, que não existia. Nesta temporada, Rony fez dois gols dessa maneira. Quase uma década depois, Didi se tornou pai da folha seca, um jeito malicioso de cobrar faltas que fazia a bola cair repentinamente e trair o goleiro, como fez Ronaldinho na Copa de 2002 contra a Inglaterra.
Essa criatividade não ficou nisso. A paradinha na cobrança de pênalti está relacionada a Pelé, que imortalizou também as tabelinhas tendo Coutinho a seu lado. Rivellino popularizou o drible do elástico enquanto Sócrates fez do toque de calcanhar artimanha que deixava rivais de boca aberta.
E o que dizer de Mário Sérgio, jogador cerebral que se atrevia a olhar para um lado e tocar a bola para o outro? Tal ousadia lhe rendeu o apelido de “Vesgo”, o que ele não era.
Médico e dirigente esportivo, Marco Aurélio Cunha acompanhou muitos jogos à beira do campo desde o fim dos anos 70. Segundo ele, o momento atual está transformando a essência do que estamos acostumados a ver. “O futebol é um jogo de enganar o adversário: o drible, o movimento, a ginga, o olhar, tudo isso faz com que você possa ludibriar o rival. Tem aquela coisa de tirar o cara do sério, falar um negócio no ouvido dele. Hoje, com as câmeras, tudo fica atrelado às regras de convivência. A consequência é que o jogo fica amarrado”, afirmou Cunha.
Praticar o politicamente correto em demasia, diz ele, vem tirando o brilho que sempre cercou o universo de uma partida de futebol. “O drible é um menosprezo ao adversário. Não tem jeito. Essa é a essência da finta. Tanto é que quando alguém dá uma caneta, o narrador até faz uma graça. A bola entre as pernas é um recurso espetacular, mas com o politicamente correto parece que é proibido. Dar um lençol para trás virou um absurdo. Hoje tem muita gente ditando regras”, completou.
Ponta-esquerda de extrema habilidade, Zé Sérgio sempre teve o drible como principal arma. De características parecidas às de Vini Jr., o ex-jogador do São Paulo disse que a resposta do ex-flamenguista foi dada na medida certa. “Tinha mesmo de ir para dentro do marcador e mostrar o que sabe fazer. Eu e o Vinícius temos estilos parecidos e um talento como o dele não pode ficar refém de violência. Essas ameaças não podem ter espaço. Ele é um talento que não temos no Brasil hoje, por exemplo.”
DO CAMPO AO APITO. O caso envolvendo Vini Jr. passa pela atuação da arbitragem. O Estadão ouviu o ex-juiz Sálvio Spínola Fagundes Filho sobre a questão, que provocou manifestações de solidariedade ao atacante do Real. “Vejo o caso do Vinícius como intolerância e também rigor em situações que não deveriam ser tratadas de tal modo. Acho que tem um pouco de falta de bom senso”, afirmou o comentarista de arbitragem do Grupo Globo.
Ele citou dois exemplos recentes para falar da falta de critério dos árbitros “O amarelo dado ao Pedro Raul, na comemoração de gol contra o Bragantino pelo Brasileiro, não teve sentido. Ele apenas colocou as mãos atrás da orelha.”
Outro fato citado envolve Neymar. O astro do Paris Saint-Germain também foi punido por fazer careta com as mãos próximas ao rosto após balançar as redes diante do Maccabi Haifa, em jogo da Liga dos Campeões da Europa. “A comemoração do Neymar foi para homenagear o Lela, pai do Richarlyson (ex-jogador do São Paulo). São punições policialescas. Isso está tirando a possibilidade dos juízes de pensar”, disse.
“O Vinícius Júnior tem a liberdade de comemorar seus gols como bem desejar. Não vejo o que ele faz como gozação ou menosprezo. Achei ridículo o que fizeram com o garoto”
Emerson Leão
Ex-jogador e treinador “O Vinícius mostrou ter coragem, e se tiver de dançar, que dance, pois futebol é isso”
Dadá Maravilha
Ex-jogador