O fim do filme B
Pequenas mentiras talvez sejam menos inofensivas do que as vantagens presunçosas contadas pelo imaginativo coronel Clement Capadose, personagem de Henry James no conto O Mentiroso. Mesmo assim, o militar Capadose, mentiroso compulsivo, é bem diferente do desonesto, falso devoto e totalmente hipócrita Tartufo, da peça de Molière.
Ah Molière, como seria o teu Tartuffe no Brasil do último quadriênio? Um só Tartufo daria conta da nossa ininterrupta tragicomédia? Ou Molière inventaria uma tartuferia de salafrários e falsos devotos?
Mas nem isso bastaria: a mentirada dos “patriotas” foi muito além: virou algo patológico, com violência e sadismo.
Os poderosos do Planalto – com seus vassalos e apoiadores fanáticos – estão embriagados de tanta mentira. Eles contestam com palavras agressivas os fatos e números comprovados pela ciência e pelo jornalismo investigativo, invertem o significado desses fatos, e novas mentiras são regurgitadas. Depois negam suas próprias mentiras, até as mais escancaradas. Essa confusão é uma tática bem urdida – e deu certo em eleições passadas, aqui e em outros países.
Impossível enumerar todos os atores e atrizes do mais longo filme B da nossa história. Essa película é a própria vida política, exibida todos os dias com suas noites. Quais cenas terão direito à imortalidade? As cômicas? As falsas e patéticas, que evocam Deus e a família? As de escárnio ou de crime constitucional? E, coisa incrível: o numeroso elenco civilmilitar-religioso não sente vergonha do papel que representa. Isso me lembra o sermão do padre Mapple, personagem de Moby Dick. Mapple, ao pregar a “Verdade diante da Falsidade” aos bravos marinheiros, adverte: “Ai de quem, neste mundo, não teme a desonra!”
Nenhum dos protagonistas e coadjuvantes desse filme B teme a desonra; nenhum é artista profissional, mas todos julgam ter luz própria. São muitos, é impossível nomeá-los. Mas essa encenação com ares de espetáculo foi capaz de despertar e mobilizar multidões de ingênuos e um punhado de espertalhões e oportunistas, todos possuídos por uma “ignorância moral”, como dizia o poeta Kaváfis. Eles estavam por aqui, à espera de um líder extremista.
O espetáculo macabro, encenado com violência física e verbal, aproxima-se do fim. Em menos de quatro anos, deixou dezenas de milhões de brasileiros na miséria, milhares de mortos na pandemia, e uma vasta área de cinzas na Amazônia e no cerrado. Será árduo e demorado reerguer esse país caído.
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Os poderosos do Planalto, com seus vassalos, estão embriagados de tanta mentira