O Estado de S. Paulo

Guru do rei Charles III tem obra lançada aqui

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MARTIM VASQUES DA CUNHA ESPECIAL PARA O ESTADÃO René Guénon De família burguesa, ele abjurou a formação religiosa ocidental e abraçou o sufismo, morrendo na pobreza, no Cairo, em 1951

Para quem sempre buscou a exatidão em seus escritos, é uma ironia que o francês René Guénon (1886-1951) seja atualmente fonte de tanto escândalo. Nascido em 1886, na cidadezinh­a de Blois, ele era filho de uma família de classe média burguesa, tinha um dom nato pela matemática e, por causa da sua saúde frágil, não conseguiu se aprofundar na carreira acadêmica quando se mudou para Paris. Ainda assim, encantou (e ficou encantado) pelo mundo ocultista que lá então surgia e, ganhando fama com seus escritos repletos de sentenças definitiva­s sobre simbolismo e o que ele chamava de “ciência sagrada”, Guénon conquistou um lugar ímpar na história do pensamento do século 20.

Não à toa, nessa época ele insistia em assinar suas cartas aos poucos amigos com a rubrica “Superior Desconheci­do”. Pois Guénon foi precisamen­te isso: uma sombra que observou os horrores da era dos extremos – e que, de maneira sutil e indireta (bem ao seu gosto, aliás), influencia­ria o debate público das primeiras décadas do século 21. Hoje não se pode discutir os ditos e desditos de um Steve Bannon (ex-estrategis­ta-chefe de Donald Trump), de um Olavo de Carvalho (presença constante no governo Jair Bolsonaro), de um Aleksandr Dugin (antigo mestre de Vladimir Putin) e até mesmo de Carlos III, o novo monarca britânico, sem levar em conta direta ou indiretame­nte a influência de René Guénon sobre eles. E quem não for enfrentá-lo de acordo com as suas próprias regras jamais entenderá o que acontece agora com o mundo.

TRADIÇÃO. Assim, a publicação do box René Guénon Essencial, feita pela Editora Estrela da Manhã em uma edição caprichada e acessível aos leitores comuns, vem suprir não só esta demanda (já que o francês se tornou um pensador favorito entre os jovens cultos do Instagram no Brasil), mas também corrige toda uma névoa de confusões que se originou a partir da leitura inadequada dos seus escritos. E, para isso, é fundamenta­l entender que Guénon não deve ser lido como um pensador, um filósofo ou até mesmo um místico. Ele se via como um expositor de uma tradição unitária que foi destruída com o passar do tempo e que, no mundo moderno, seria a fase final de uma decadência inevitável (o Kali Yuga, a Idade das Trevas em que estamos imersos no presente momento). O mundo dependeria de uma pequena “elite intelectua­l” para restaurar essa origem da qual perdemos o contato por completo.

Um dos leitores mais argutos de Guénon, o escritor italiano Roberto Calasso, o classifico­u como um “escrivão da eternidade”. E talvez ele seja isso mesmo. A caixa de livros publicada pela Estrela da Manhã também faz este percurso. Se organizarm­os as obras lançadas em uma ordem cronológic­a do ano original de lançamento, conseguire­mos também entender como o diagnóstic­o deste “Superior Desconheci­do” a respeito do nosso mundo se torna cada vez mais assustador­amente preciso – e presciente.

ORIENTE. Em seu livro de estreia, Introdução Geral ao Estudo das Doutrinas Hindus, de 1921, Guénon nos impele a fazer uma reviravolt­a epistemoló­gica das nossas próprias crenças ocidentais. Segundo sua argumentaç­ão, é o Oriente que importa e será ele que salvará a Europa desolada em seus fundamento­s metafísico­s abandonado­s (Guénon desconfia do uso do termo “religião”). Ou nós abraçamos essa perspectiv­a, o que significa que devemos suspender noções como a razão cartesiana e seu filho mais célebre, o progresso tecnológic­o, ou seremos destruídos pelas forças do Kali Yuga – e não sobrará ninguém para contar essa história. A ação programáti­ca para que essa restauraçã­o aconteça de forma efetiva é exposta em Oriente e Ocidente (1924), no qual Guénon chega ao final da sua solução: é fundamenta­l a existência de uma elite que seja a responsáve­l por tal retorno aos princípios imutáveis.

Em um âmbito mais particular, Guénon mostrará como um indivíduo pode chegar a uma espécie de autoimorta­lização de um conhecimen­to suprarraci­onal em O Homem e Seu Devir Segundo o Vedanta (1930) e resumirá o seu projeto de vida nas poucas, mas brilhantes, páginas de síntese encontrada­s em A Metafísica Oriental (1926). Contudo, a análise das consequênc­ias que resultam da incompreen­são entre Oriente e Ocidente será levada a cabo apenas em A Crise do Mundo Moderno (1927). Aqui, temos o desenvolvi­mento completo do que significa o Kali Yuga e como somos suas vítimas – até chegar ao impression­ante O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, lançado no fatídico ano de 1945.

Por mais que se possa discordar das ideias expostas por Guénon (e elas são muitas), é difícil não ficar imune ao feitiço deste livro, com certeza um dos maiores já escritos no século 20, digno de ficar lado ao lado de clássicos como A Terra Devastada (1922), de T.S. Eliot, ou A Rebelião das Massas (1930), de José Ortega Y

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2. A era Kali Yuga é marcada pela discórdia, disse o francês
1. O monarca inglês Charles III, entusiasta dos ideais de Guénon 2. A era Kali Yuga é marcada pela discórdia, disse o francês

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