Cinemateca: ano um
Há um ano, graças ao apoio de alguns mecenas, do Instituto Cultural Itaú e do Instituto Cultural Vale, colaboradores da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) entravam na Cinemateca Brasileira, que ficara fechada por 16 meses. A situação era de penúria na sede principal em Vila Clementino e de tragédia no edifício da Vila Leopoldina, castigado por uma enchente e um incêndio sucessivos. O que não se perdera no contato com a água em 2020 tinha sido consumido pelo fogo em 2021.
A recuperação da normalidade começou imediatamente, apesar das imensas dificuldades. Os equipamentos de precisão do Laboratório de Imagem e Som estavam contaminados pela umidade e fungos. Infiltrações da chuva eram encontradas no depósito de cópias de filmes. No rescaldo do incêndio, urgente era retirar do ambiente tóxico da Vila Leopoldina o acervo de filmes e equipamentos que por sorte havia sobrevivido aos sinistros.
Ao mesmo tempo, o governo federal ultimava a transferência da gestão da Cinemateca
Brasileira para a SAC, que vencera um chamamento público e se habilitava formalmente como organização social a responsabilizar-se pela proteção do acervo, atendimento ao público e retomada dos trabalhos técnicos. A consolidação das relações institucionais entre a SAC e a Cinemateca Brasileira foi um processo de décadas, finalmente concluído em 2022, ano em que a entidade completou 60 anos.
O contrato firmado com o governo era sabidamente deficitário; não contemplava as necessidades mínimas de manutenção da instituição. A verba anual acordada é de R$ 14 milhões, mais o compromisso de a SAC captar no mínimo 40% em outras fontes. Não havia opção, a Cinemateca precisava ser resgatada para apostar no futuro. A SAC, mais uma vez, assumiu o risco.
Antigos colaboradores foram contratados, o conselho de administração e a diretoria se estabeleceram, a arrumação da casa se iniciava. Em maio último, a Cinemateca reabriu ao público, num clima de euforia vivido pela classe cinematográfica como a reconquista de um território. Após dez anos de crise, a Cinemateca renascia.
O público retornou às sessões de filmes nas salas de projeção rebatizadas em homenagem a Grande Otelo e Oscarito e nas sessões ao ar livre. A programação celebrou os 60 anos da SAC com uma retrospectiva de seus melhores programas. Retornaram à Cinemateca os grandes eventos e festivais – Semana ABC, Mostra Internacional de Cinema, Festival de Curtas, Encontro Socine, Festival Piauí. O espaço agradável com jardins e esculturas atraiu ainda as atenções de eventos culturais mais amplos, e a Cinemateca caiu no gosto do público.
A longa crise, a demissão dos funcionários, o drama do incêndio, o temor de uma nova perda traumática para o patrimônio cultural após a destruição do Museu Nacional convergiram para uma inédita solidariedade em torno do destino da Cinemateca. Vizinhos do bairro da Vila Mariana, vereadores, poder público municipal e estadual, imprensa, associações de cineastas, cinematecas estrangeiras, cineastas conscientes do papel de uma cinemateca para a manutenção da cinefilia, universidades, mecenas privados, empresas com consciência cultural, institutos culturais, todos se mobilizaram para o reerguimento da Cinemateca.
Ao fim de um ano, podemos divulgar números promissores: 70 mil visitantes, R$ 15 milhões arrecadados via leis de incentivo. O laboratório recuperou digitalmente Agulha no Palheiro, de Alex Viany, cuja cópia foi exibida na Mostra Internacional na presença de sua atriz, Dóris Monteiro. Os filmes realizados pelo casal Claude e Dina Lévi-strauss, rodados em 1935/1936 em Mato Grosso, foram restaurados. Um projeto inédito de recuperação dos filmes do primeiro cinema rodados em película de base inflamável (nitrato de celulose) recebeu recursos significativos, o projeto de reforma e ampliação da área técnica começa a desenhar-se, o enfrentamento das coleções históricas como a do lendário Canal 100 já está na mira. O Centro de Documentação e Pesquisa normalizou suas atividades de tratamento do acervo, pesquisa e edição de publicações, catalogação de filmes e documentos, e, sobretudo, o atendimento dos pesquisadores que tiveram seus trabalhos prejudicados com a falta de acesso às valiosas fontes documentais depositadas na Cinemateca. Iniciativas estruturantes que demonstram que a Cinemateca retomou o rumo e a confiança da sociedade.
As boas novas não escondem a responsabilidade de assegurar a sustentabilidade da instituição com maiores aportes do governo federal e ampliação da rede privada de apoio. Para 2023, o compromisso é consolidar os avanços e ampliar a atuação da Cinemateca no plano nacional e internacional, por meio de um novo site e de um projeto de redescoberta do cineasta Alberto Cavalcanti, com a participação de cinematecas da Inglaterra, França e Alemanha. A obra do mais internacional dos nossos cineastas voltará a circular pelo mundo.
A SAC reassumiu seu protagonismo ao mobilizar poderes públicos e sociedade civil em um amplo movimento de apoio à recuperação da Cinemateca Brasileira, que enfrentava dificuldades. A iniciativa foi bem-sucedida. A Cinemateca Brasileira decolou, agora é nossa obrigação mantê-la em voo de cruzeiro. •
A longa crise, as demissões e o drama do incêndio convergiram para uma inédita solidariedade em torno do destino da Cinemateca