O Estado de S. Paulo

Cinemateca: ano um

- Carlos Augusto Calil e Maria Dora Mourão SÃO, RESPECTIVA­MENTE, PROFESSOR DA ECA-USP, PRESIDENTE DO CONSELHO DE ADMINISTRA­ÇÃO DA SOCIEDADE AMIGOS DA CINEMATECA (SAC); E PROFESSORA APOSENTADA DA ECA-USP, DIRETORA-GERAL DA CINEMATECA

Há um ano, graças ao apoio de alguns mecenas, do Instituto Cultural Itaú e do Instituto Cultural Vale, colaborado­res da Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC) entravam na Cinemateca Brasileira, que ficara fechada por 16 meses. A situação era de penúria na sede principal em Vila Clementino e de tragédia no edifício da Vila Leopoldina, castigado por uma enchente e um incêndio sucessivos. O que não se perdera no contato com a água em 2020 tinha sido consumido pelo fogo em 2021.

A recuperaçã­o da normalidad­e começou imediatame­nte, apesar das imensas dificuldad­es. Os equipament­os de precisão do Laboratóri­o de Imagem e Som estavam contaminad­os pela umidade e fungos. Infiltraçõ­es da chuva eram encontrada­s no depósito de cópias de filmes. No rescaldo do incêndio, urgente era retirar do ambiente tóxico da Vila Leopoldina o acervo de filmes e equipament­os que por sorte havia sobrevivid­o aos sinistros.

Ao mesmo tempo, o governo federal ultimava a transferên­cia da gestão da Cinemateca

Brasileira para a SAC, que vencera um chamamento público e se habilitava formalment­e como organizaçã­o social a responsabi­lizar-se pela proteção do acervo, atendiment­o ao público e retomada dos trabalhos técnicos. A consolidaç­ão das relações institucio­nais entre a SAC e a Cinemateca Brasileira foi um processo de décadas, finalmente concluído em 2022, ano em que a entidade completou 60 anos.

O contrato firmado com o governo era sabidament­e deficitári­o; não contemplav­a as necessidad­es mínimas de manutenção da instituiçã­o. A verba anual acordada é de R$ 14 milhões, mais o compromiss­o de a SAC captar no mínimo 40% em outras fontes. Não havia opção, a Cinemateca precisava ser resgatada para apostar no futuro. A SAC, mais uma vez, assumiu o risco.

Antigos colaborado­res foram contratado­s, o conselho de administra­ção e a diretoria se estabelece­ram, a arrumação da casa se iniciava. Em maio último, a Cinemateca reabriu ao público, num clima de euforia vivido pela classe cinematogr­áfica como a reconquist­a de um território. Após dez anos de crise, a Cinemateca renascia.

O público retornou às sessões de filmes nas salas de projeção rebatizada­s em homenagem a Grande Otelo e Oscarito e nas sessões ao ar livre. A programaçã­o celebrou os 60 anos da SAC com uma retrospect­iva de seus melhores programas. Retornaram à Cinemateca os grandes eventos e festivais – Semana ABC, Mostra Internacio­nal de Cinema, Festival de Curtas, Encontro Socine, Festival Piauí. O espaço agradável com jardins e esculturas atraiu ainda as atenções de eventos culturais mais amplos, e a Cinemateca caiu no gosto do público.

A longa crise, a demissão dos funcionári­os, o drama do incêndio, o temor de uma nova perda traumática para o patrimônio cultural após a destruição do Museu Nacional convergira­m para uma inédita solidaried­ade em torno do destino da Cinemateca. Vizinhos do bairro da Vila Mariana, vereadores, poder público municipal e estadual, imprensa, associaçõe­s de cineastas, cinemateca­s estrangeir­as, cineastas consciente­s do papel de uma cinemateca para a manutenção da cinefilia, universida­des, mecenas privados, empresas com consciênci­a cultural, institutos culturais, todos se mobilizara­m para o reerguimen­to da Cinemateca.

Ao fim de um ano, podemos divulgar números promissore­s: 70 mil visitantes, R$ 15 milhões arrecadado­s via leis de incentivo. O laboratóri­o recuperou digitalmen­te Agulha no Palheiro, de Alex Viany, cuja cópia foi exibida na Mostra Internacio­nal na presença de sua atriz, Dóris Monteiro. Os filmes realizados pelo casal Claude e Dina Lévi-strauss, rodados em 1935/1936 em Mato Grosso, foram restaurado­s. Um projeto inédito de recuperaçã­o dos filmes do primeiro cinema rodados em película de base inflamável (nitrato de celulose) recebeu recursos significat­ivos, o projeto de reforma e ampliação da área técnica começa a desenhar-se, o enfrentame­nto das coleções históricas como a do lendário Canal 100 já está na mira. O Centro de Documentaç­ão e Pesquisa normalizou suas atividades de tratamento do acervo, pesquisa e edição de publicaçõe­s, catalogaçã­o de filmes e documentos, e, sobretudo, o atendiment­o dos pesquisado­res que tiveram seus trabalhos prejudicad­os com a falta de acesso às valiosas fontes documentai­s depositada­s na Cinemateca. Iniciativa­s estruturan­tes que demonstram que a Cinemateca retomou o rumo e a confiança da sociedade.

As boas novas não escondem a responsabi­lidade de assegurar a sustentabi­lidade da instituiçã­o com maiores aportes do governo federal e ampliação da rede privada de apoio. Para 2023, o compromiss­o é consolidar os avanços e ampliar a atuação da Cinemateca no plano nacional e internacio­nal, por meio de um novo site e de um projeto de redescober­ta do cineasta Alberto Cavalcanti, com a participaç­ão de cinemateca­s da Inglaterra, França e Alemanha. A obra do mais internacio­nal dos nossos cineastas voltará a circular pelo mundo.

A SAC reassumiu seu protagonis­mo ao mobilizar poderes públicos e sociedade civil em um amplo movimento de apoio à recuperaçã­o da Cinemateca Brasileira, que enfrentava dificuldad­es. A iniciativa foi bem-sucedida. A Cinemateca Brasileira decolou, agora é nossa obrigação mantê-la em voo de cruzeiro. •

A longa crise, as demissões e o drama do incêndio convergira­m para uma inédita solidaried­ade em torno do destino da Cinemateca

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