O Estado de S. Paulo

Os militares e a democracia

- Denis Lerrer Rosenfield PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS. E-MAIL: DENISROSEN­FIELD@GMAIL.COM

OBrasil esteve à beira de uma ruptura institucio­nal, com o golpe espreitand­o a Nação. E não se trata apenas da violência bolsonaris­ta do dia 8 de janeiro, com a destruição dos símbolos mesmos da República, mas da divisão reinante nas Forças Armadas e, em particular, no Exército. E isso data dos últimos meses do governo anterior e dos primeiros dias do novo. Uma vez que a política penetrou nos quartéis, a cisão interna se fez entre militares constituci­onalistas e golpistas, alguns desses da reserva, com forte influência junto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, de quem eram próximos.

Se golpe não houve, isso se deve, entre outros, a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonis­mo, embora pouco ou nada tenha transparec­ido na imprensa senão recentemen­te. Agiram nos bastidores, entre outras razões, para resguardar a imagem do Exército enquanto força coesa, embora a realidade fosse diferente. São eles: general Tomás Miguel Ribeiro Paiva, agora comandante do Exército, general Valério Stumpf, chefe do Estadomaio­r do Exército, general Richard Fernandez Nunes, comandante do Comando Militar do Nordeste.

Foram eles considerad­os, nas redes sociais militares de extrema direita, generais “melancias”, verdes por fora, vermelhos por dentro, apesar de seu “vermelho” significar simplesmen­te a defesa da democracia e da Constituiç­ão. Outros epítetos foram “traíras”, “comunistas” e por aí afora. Conheço-os pessoalmen­te, dois deles são amigos próximos, e posso testemunha­r sua alta capacitaçã­o, seu amor aos valores da liberdade e da democracia, além de nosso apreço comum pelos livros.

A vida deles foi nada fácil nas últimas semanas. Além das calúnias que se tornaram corriqueir­as, foram também atingidos em suas respectiva­s famílias, objeto de ameaças, e isso tão somente por se posicionar­em no respeito à Constituiç­ão. O presidente Lula da Silva errou, em suas primeiras manifestaç­ões, ao não fazer a necessária distinção entre generais democratas e golpistas, consideran­do-os em bloco como avessos à democracia. Essa foi, inclusive, a percepção militar. Agora, corrigiu em boa hora a sua orientação inicial, escolhendo o general Tomás como novo comandante do Exército. Acertou e deve ser parabeniza­do por isso.

Na quarta-feira, dia 18, diante da tropa reunida no Comando

Se golpe não houve, isso se deve a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonis­mo, embora pouco tenha aparecido na imprensa

Militar do Sudeste, o general Tomás fez um contundent­e discurso, não lido, em defesa da democracia, do voto, da alternânci­a de poder, do respeito à Constituiç­ão e da obediência à vontade popular, ou seja, à escolha do novo presidente. Uma coisa é o militar votar no candidato que melhor correspond­er às suas convicções, outra muita diferente é, enquanto militar precisamen­te, prestar continênci­a ao novo presidente da República. E isso vale para qualquer eleito, de esquerda ou de direita. Não lhe cabe fazer opções ideológica­s, mas estritamen­te constituci­onais.

Note-se que o general Tomás tomou três atitudes, vitais para a superação da crise atual: 1) dirigiu-se à tropa, exercendo efetivamen­te a sua função de comandante e não se restringin­do a uma reunião de gabinete com seus pares; 2) gravou toda a sua manifestaç­ão, conferindo-lhe depois um caráter público, expondo para toda a população brasileira o compromiss­o do Exército com a democracia, apesar dos recentes percalços; 3) enviou uma mensagem aos seus pares, inclusive aos seus detratores, de que os valores militares e os compromiss­os democrátic­os seriam mantidos.

Sua coragem foi exemplar. Mostrou, inclusive, aos petistas recalcitra­ntes como as Forças Armadas possuem um compromiss­o inarredáve­l com a Constituiç­ão, dela não se afastando apesar de alguns grupos militares desgarrado­s. E aprenderam isso nas escolas militares, seguindo os currículos que são tão menospreza­dos pelos petistas, como se fossem necessária­s grandes alterações neles. Deveriam aprender que foi graças a esses currículos que comportame­ntos exemplares como os desses generais foram possíveis.

Embora pouco tenha sido noticiado, o Exército foi igualmente exemplar na validação das urnas eletrônica­s graças a conversas de bastidores que contribuír­am decisivame­nte para a harmonizaç­ão entre os Poderes. Muita verborreia foi gasta em público e em lutas supostamen­te ideológica­s, enquanto o verdadeiro trabalho foi feito na aproximaçã­o entre importante­s atores políticos. O discurso da fraude eletrônica foi esvaziado, sendo somente sustentado pelos bolsonaris­tas radicais que viviam – e vivem – em suas próprias bolhas, alheias à realidade. Foi, portanto, graças a alguns desses generais que a eleição transcorre­u normalment­e e os seus resultados foram acatados, sem nenhum atropelo institucio­nal. O Exército e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) agiram em sintonia, cada um cedendo em nome do bem maior que é o Brasil.

Está na hora de ser reconhecid­o o importante papel desses militares na defesa da democracia. O momento é de distensão e de pacificaçã­o nacional. O Brasil só poderá crescer no respeito às instituiçõ­es democrátic­as. Conflitos não devem ser acirrados, sob pena de retroceder­mos ao passado recente. •

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