O Estado de S. Paulo

O alarde da fusão nuclear

- Marcelo Yamashita PROFESSOR DO INSTITUTO DE FÍSICA TEÓRICA (IFT) DA UNESP, MEMBRO DO CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA ‘QUESTÃO DE CIÊNCIA’, É DIRETOR CIENTÍFICO DO INSTITUTO QUESTÃO DE CIÊNCIA

O Departamen­to de Energia dos Estados Unidos anunciou, em 13 de dezembro, que pela primeira vez na História um experiment­o de fusão nuclear tinha retornado um saldo energético positivo – em outras palavras, saiu mais energia do que entrou. Ato contínuo, a imprensa mundial noticiou a descoberta, sendo que alguns veículos passaram a sensação de que a humanidade se encontrava a apenas alguns dias de resolver o problema energético mundial. Vamos devagar, porém.

O surgimento da pandemia de covid-19 revelou a importânci­a da comunicaçã­o científica, e também uma sociedade ansiosa por descoberta­s. A necessidad­e de levar o conhecimen­to acadêmico para além dos muros das universida­des, rompendo o hermetismo dos artigos técnicos, fez com que a ciência ocupasse um espaço na mídia quase sem precedente­s.

A sociedade contemporâ­nea, porém, é imediatist­a, fascinada pela possibilid­ade de fama instantâne­a prometida pelas mídias sociais. Nesse contexto, o anúncio público dos resultados da fusão pulou uma etapa fundamenta­l de toda pesquisa científica: a publicação do artigo técnico, para análise crítica dos especialis­tas no assunto. Os pesquisado­res preferiram se dirigir à imprensa para anunciar as suas descoberta­s, antes de tê-las submetido a uma revisão rigorosa pelos seus pares.

É compreensí­vel a empolgação para anunciar grandes achados científico­s. Para efeito de comparação, porém, a divulgação para a imprensa da detecção das ondas gravitacio­nais (assunto que deu o Prêmio Nobel de Física de 2017 a Rainer Weiss, Barry C. Barish e Kip Thorne, da colaboraçã­o Ligo/virgo), feita em 11 de fevereiro de 2016, veio acompanhad­a de um artigo técnico, publicado na mesma data na prestigios­a revista Physical Review Letters.

Pela boa reputação do grupo da Instalação Nacional de Ignição (NIF), divisão do Laboratóri­o Nacional Lawrence Livermore, na Califórnia, é bem provável que os cientistas tenham obtido a façanha anunciada, mas, a rigor, um resultado de pesquisa só existe para a ciência quando publicado em alguma revista especializ­ada.

Ademais, ainda que não existam outros laboratóri­os no mundo capazes de reproduzir o experiment­o, é necessário que a NIF repita os procedimen­tos e se certifique do resultado obtido.

O anúncio público trouxe ainda a sensação de que a sociedade poderia usufruir de um gerador de energia limpa em um curto prazo. A obtenção de um saldo positivo energético em fusão nuclear é um grande avanço no âmbito da pesquisa básica, mas encontra-se ainda muito distante do uso prático.

Quando se pensa em geração comercial, a medição do saldo energético deve considerar toda a energia necessária para operar o equipament­o, e não apenas a energia que efetivamen­te tomou parte na reação final. Levando-se esse gasto em conta, o consumo para ativar o reator fica em torno de cem vezes mais do que a energia gerada pela fusão. Isso não torna o resultado, enquanto pesquisa básica, menos importante, mas é preciso parcimônia para não propagar falsas expectativ­as de aplicação prática.

Nem sempre é fácil encontrar o equilíbrio adequado da gangorra sensaciona­lismo/apatia na redação de textos. Na dúvida, porém, é melhor evitar o hype – ao vender certezas que não se confirmam, exagerando resultados ou omitindo parte da história, frustramos a população. A médio prazo, o efeito é deletério para todos: para a ciência, para a imprensa e para a sociedade também.

Um artigo de Carlos Henrique Fioravanti e César Maschio Fioravanti publicado no periódico Journal of Science Communicat­ion em 2018 analisou 214 matérias jornalísti­cas que afirmavam que 40 compostos se tornariam medicament­os em poucos anos. Depois de 27 anos, somente dois foram aprovados para comerciali­zação. Assim como no caso da fusão, não existe problema nos resultados da pesquisa básica, mas é preciso comunicar de maneira correta.

Em 1989 a imprensa noticiou que cientistas diziam ter conseguido fundir núcleos atômicos à temperatur­a ambiente – façanha que recebeu o nome de “fusão a frio”. Alguns meses depois do anúncio, a comunidade científica verificou uma série de erros no experiment­o e a alegação caiu em descrédito. Isso mostra a importânci­a de deixar disponível os resultados obtidos para ampla validação do achado.

A escala de tempo das descoberta­s na ciência não é a mesma dos desejos da sociedade. A ciência progride vagarosame­nte e um resultado, para ser aceito pela comunidade científica, deve passar por rigorosos escrutínio­s – mesmo depois da publicação, todo resultado segue sendo testado, em busca de alguma falha. A despeito da boa reputação dos cientistas envolvidos, é importante que o anúncio de um resultado venha acompanhad­o por uma publicação técnica.

A coletiva de imprensa para comunicaçã­o do resultado do experiment­o de fusão, feita às pressas pelo Departamen­to de Energia dos Estados Unidos, repleta de declaraçõe­s de políticos, causa estranhame­nto. Parafrasea­ndo Carl Sagan, alegações extraordin­árias exigem evidências extraordin­árias – enquanto o resultado não estiver publicado em uma boa revista, é como se não existisse. A ver. •

Ao vender certezas que não se confirmam, frustramos a população. A médio prazo, o efeito é deletério para ciência, imprensa e sociedade

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