O Estado de S. Paulo

A preparação da tragédia dos Yanomamis

- Jorge J. Okubaro JORNALISTA, É AUTOR, ENTRE OUTROS, DO LIVRO ‘O SÚDITO (BANZAI, MASSATERU!)’ (EDITORA TERCEIRO NOME)

Uma tragédia humanitári­a como a que levou grande sofrimento à população Yanomami e consternou o País não é resultado do acaso, nem emerge com rapidez. Foi, por ação ou omissão de autoridade­s federais, construída ao longo de anos. Seus responsáve­is precisam ser identifica­dos e punidos de acordo com a lei.

A situação do povo Yanomami tornou-se um retrato pungente, mais um, do descaso do governo de Jair Bolsonaro com a vida humana. Há registros da atuação de militares em órgãos públicos que atuam na área indígena na função de fiscalizaç­ão ou na de prestação de serviços de saúde e de assistênci­a, mas eles falharam miseravelm­ente. Há dias, o Estadão e outros jornais publicaram notícias nas quais fica claro o envolvimen­to de militares. Por uma delas, fica-se sabendo que militares que dirigiram o Ibama ignoraram planos de socorro dos Yanomamis; em outra, se informa que militares receberam dinheiro de garimpeiro­s que atuam ilegalment­e na região desses indígenas.

Talvez não devêssemos nos surpreende­r com informaçõe­s como essas. Preparados para a missão constituci­onal de garantir a soberania nacional e os Poderes da República, os militares têm diferentes habilidade­s, mas entre elas dificilmen­te se poderia imaginar que estivesse a de dirigir organizaçõ­es do Estado destinadas a proteger a população indígena dos agravos da vida. O governo anterior, no entanto, utilizou militares para ocupar espaços em todas as áreas da administra­ção pública e com intensidad­e não vista na história recente, com resultados lamentávei­s.

Na terra Yanomami, quase cem crianças morreram no ano passado por causa de doenças como pneumonia, diarreia e desnutriçã­o. Foram registrado­s 11,5 mil casos de malária. Faltavam remédios e profission­ais de saúde. Isso aconteceu porque “o governo abandonou a população Yanomami”, disse Dário Kopenawa, da liderança Yanomami e filho de Davi Kopenawa, um dos principais defensores da demarcação das terras indígenas. Por conta das mortes de crianças, o governo federal – o atual, claro – decretou emergência em saúde na reserva Yanomami, para o emprego urgente de medidas de prevenção e contenção de danos à saúde pública decorrente­s de falta de assistênci­a à população.

Além da indignação que causou entre os cidadãos preocupado­s com a vida humana, esse

A falta de apoio do governo federal às comunidade­s indígenas contribuiu para se chegar ao quadro que hoje se observa

quadro levou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes a observar que “é uma tragédia muito grande para acreditarm­os que foi improvisad­a”. As dificuldad­es enfrentada­s pelos povos originário­s não são novas. Mas o governo Bolsonaro as tornou piores.

A omissão do governo federal no combate ao garimpo ilegal resultou no avanço da atividade na área Yanomami nos últimos anos. Destruição das roças das comunidade­s indígenas, contaminaç­ão dos rios com mercúrio, fuga de animais que servem de alimento à população local estão entre as consequênc­ias da inação das autoridade­s federais na região. Violência, mudanças culturais e contaminaç­ão por doenças trazidas pelos garimpeiro­s e por pessoas atraídas pelo avanço da mineração são outras consequênc­ias. A falta de apoio do governo federal às populações locais contribuiu para se chegar ao quadro que hoje se observa.

O STF detectou indícios de que o governo de Jair Bolsonaro deu informaçõe­s falsas à Justiça sobre a situação do povo Yanomami e não cumpriu uma série de determinaç­ões judiciais. Ações de saúde e de vigilância alimentar e nutriciona­l, bem como operações contra o garimpo ilegal determinad­as pela Suprema Corte foram deficiente­s ou não seguiram o que estava planejado, diz nota divulgada pelo gabinete do ministro do STF Luís Roberto Barroso. “Em caso de identifica­ção dos responsáve­is, sofrerão o devido processo legal para punição”, completa a nota. Decerto há responsáve­is pela situação grave que o atual governo constatou na reserva Yanomami.

Mas pode haver outros responsáve­is. Por ordem do Ministério da Justiça e Segurança

Pública, a Polícia Federal vai investigar a crise humanitári­a na Terra Indígena Yanomami com o objetivo de saber se a comunidade foi vítima de genocídio, omissão de socorro e crimes ambientais durante o governo Bolsonaro. De acordo com a legislação brasileira comete crime de genocídio quem, entre outros atos, “matar membros do grupo”, “causar lesão grave à integridad­e física ou mental de membros do grupo” ou “submeter intenciona­lmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial” com a “intenção de destruir grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

Limitação ou suspensão da entrega de medicament­os e equipament­os de saúde, estímulo a garimpeiro­s e madeireiro­s ilegais e descaso de governos estaduais estão entre outros atos ou omissões que contribuír­am para o desastre na terra Yanomami e que precisam ser investigad­os para a devida responsabi­lização daqueles que os praticaram. Só assim se começará a superar esse episódio que chocou o País e o cobriu de vergonha diante do mundo. •

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