O Estado de S. Paulo

Frente ampla pela verdade

Em meio a uma epidemia de desinforma­ção, liderada pelo presidente, a imprensa soube se unir em prol do bem comum

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Após 965 dias ininterrup­tos de trabalho, o consórcio de veículos de imprensa criado para garantir dados confiáveis sobre a pandemia foi encerrado. O grupo – integrado por Estadão, g1, O Globo, Extra, Folha

e UOL – nasceu num contexto de dupla adversidad­e: uma epidemia de desinforma­ção global agravada por um presidente orgulhosam­ente obscuranti­sta.

Desde o início da primeira pandemia na era das redes sociais, as autoridade­s sanitárias alertaram para os riscos da “infodemia”: a viralizaçã­o de informaçõe­s oriundas de fontes não confiáveis. Um estudo publicado no American Journal of Tropical Medicine and Hygiene analisou 2 mil publicaçõe­s sobre a pandemia nas redes e constatou que apenas 9% traziam informaçõe­s verdadeira­s.

Para piorar, coube ao Brasil a triste sina de ter no comando um chefe de Estado consagrado como líder do negacionis­mo global. Não foi um caso isolado. A guerra de Jair Bolsonaro contra a realidade produziu muitas baixas. Seu governo bateu recordes de obstruções à Lei de Acesso à Informação e alçou redes bolsonaris­tas a instrument­os de consulta pública. Quando dados de órgãos públicos – como do IBGE, sobre o emprego, ou do Inpe, sobre o desmatamen­to – contrariav­am Bolsonaro, a reação era “matar o mensageiro”, exonerando ou desqualifi­cando seus diretores. Documentos foram indiscrimi­nadamente classifica­dos como sigilosos e a opacidade foi estendida ao dinheiro público, com o engendrame­nto de um “orçamento secreto”.

Bolsonaro já disse que “o maior problema do Brasil” é “a imprensa”, e que ela foi responsáve­l pela “histeria” da pandemia. Não à toa, os ataques físicos e morais a jornalista­s escalaram. O próprio Bolsonaro ameaçou “encher” um jornalista de “porrada”.

Bolsonaro demitiu dois ministros da Saúde, médicos de ofício, por se negarem a convalidar tratamento­s comprovada­mente ineficazes. Sob a ingerência do intendente Eduardo Pazuello, o Ministério passou a atrasar a divulgação diária – “acabou matéria no Jornal Nacional”, celebrou Bolsonaro. Depois, porque isso seria “bom para o Brasil”, passou a omitir o número acumulado de mortos e infectados.

“Quando o Estado brasileiro falhou no dever mais básico de informação no enfrentame­nto de uma epidemia, a imprensa, em uma ação inédita, uniu forças para suprir o vazio deixado pela inépcia oficial”, disse o diretor de jornalismo do Estadão, Eurípedes Alcântara. “Cumpriu uma nobre missão em consórcio, contrarian­do emergencia­l e temporaria­mente sua natureza competitiv­a, que garante a pluralidad­e de visões.”

Essas circunstân­cias excepciona­is viriam a se repetir quando o presidente ameaçou o próprio coração da democracia com declaraçõe­s fraudulent­as sobre o sistema eleitoral e 42 veículos se uniram no Projeto Comprova para checar desinforma­ções.

“Esperamos que momentos como o que exigiu a formação do consórcio nunca mais se repitam no Brasil”, augurou Alcântara. Mas, se vierem a se repetir, o cidadão pode confiar que os veículos de imprensa saberão deixar seus interesses particular­es de lado para se unir em prol do bem comum.l

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