O Estado de S. Paulo

Presos elegem o seu melhor livro na França

Projeto Goncourt reuniu 500 detidos de 31 prisões que escolheram a sua obra vencedora entre 15 finalistas

- AURELIEN BREEDEN

Em uma tarde recente perto de Orléans, no Vale do Loire, cada membro do júri do mais novo prêmio literário da França saiu de sua cela na prisão. Os presos – mais de uma dúzia de homens e mulheres detidos no Centro Penitenciá­rio Orléans-saran – se reuniram para discutir romances publicados na França em 2022 e escolher aquele que considerav­am o melhor. Um deles sugeriu O Mago do Kremlin, visão ficcional do círculo íntimo do presidente russo. Outro torcia por La Petite Menteuse (A pequena mentirosa, em tradução livre), romance que explora a era pós-metoo. Os debates foram animados; as críticas, contundent­es.

Os presidiári­os fizeram parte da primeira edição de um novo prêmio literário patrocinad­o pelo governo e concedido por eles. Chamado de Goncourt des détenus, ou Goncourt dos presos, é o mais recente de vários desdobrame­ntos do prêmio literário mais prestigiad­o da França. Reuniram-se ao longo de três meses para discutir livros da lista de 15 finalistas do Goncourt.

O prêmio foi concedido em 15 de dezembro em Paris a Sarah Jollien-fardel por Sa Préférée (Sua preferida), sobre uma mulher que luta para lidar com o legado de abuso físico do pai.

ÚNICO. Algumas prisões organizara­m prêmios literários próprios, mas o Goncourt dos presos é sem precedente­s em tamanho e alcance: cerca de 500 pessoas detidas em 31 prisões participar­am dele. Também é proeminent­emente apoiado e promovido pelo governo francês, que muitas vezes é criticado pela direita por ser muito leniente com os condenados, e pela esquerda por encarcerar muita gente em instalaçõe­s deteriorad­as.

O projeto Goncourt, no entanto, vem enfrentand­o poucas críticas – sinal do lugar sagrado da literatura na cultura francesa e da crença em suas virtudes transforma­doras. “Sempre que a cultura, a língua e as palavras avançam, a violência recua. O tempo na prisão tem de ser um tempo de punição, mas também de transforma­ção”, disse Éric Dupond-moretti, ministro da Justiça da França.

Para os presos na região de Orléans, o processo de leitura e debate importava tanto quanto participar da seleção do vencedor, se não mais. Muitos saudaram a oportunida­de de se relacionar­em com outros presos, de escapar à monotonia da detenção e de afastar o estigma de ser um prisioneir­o, num momento em que a opinião pública e os políticos na França adotam uma linha cada vez mais dura em relação ao encarceram­ento. O estímulo para o Goncourt dos presos partiu do Centro Nacional do Livro.

Muitos esperam que o novo prêmio altere a percepção do público. “Perceber que, sim, essas pessoas de fato têm algo a dizer sobre literatura”, comentou Odile Macchi, chefe da divisão de investigaç­ão do Observatór­io Internacio­nal de Prisões na França.l

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ANDREA MANTOVANI/THE NEW YORK TIMES A ideia é alterar a percepção do público sobre os presidiári­os

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