O Estado de S. Paulo

Palavras, palavras

- Demi Getschko trieste@gmail.com ENGENHEIRO ELÉTRICO

Alíngua é fundamenta­l para que possamos elaborar pensamento­s. Mesmo sem ir a Orwell, sabemos que, quem domina a língua das pessoas, domina o seu pensamento.

Heidegger já dizia que “nós achamos que dominamos a linguagem, mas é ela que nos domina”, e Wittgenste­in alertanos que “os limites de nosso pensamento são os limites de nossa linguagem”.

Não sei avaliar o impacto que as redes sociais – não a internet – causam em nossa linguagem, mas, vendo a facilidade e a leviandade com que nos manifestam­os nelas, lembrome da resposta de Hamlet a Polônio quando este, ao vê-lo no jardim com um livro na mão, pergunta: “O que lês, meu senhor?”, e Hamlet retruca “palavras, palavras, palavras”… Incisivame­nte, adiciona que as tais palavras são “maledicênc­ias: afirmam que os velhos têm barba cinza e pele enrugada…”.

Há múltiplas facetas por onde poderíamos examinar o que ocorre com nossa língua, e que parcela de responsabi­lidade se pode atribuir à exuberânci­a de imediata expressão que temos com a internet. Há um misto de deslumbram­ento com vocábulos estrangeir­os, alguns com perfeita tradução para o português, e um esnobismo que nos leva a usá-los. Não se descarte, também, o comodismo que nos faz preferir o que está mais à mão – comodismo

Dói ver como se tem lidado com a nossa linguagem nas redes sociais e torço para que seja preservada

que é também fator para a centraliza­ção que ocorre em torno de plataforma­s, e representa estímulo ao uso de algoritmos por parte delas.

Tive a sorte de ouvir de ótimos professore­s de português no colégio que “a língua é dinâmica” e que, portanto, pode e deve ser enriquecid­a com conceitos que não tínhamos.

Certamente, não se quer traduzir “bit” e “byte”, conceitos novos, mas por que “delivery” teria mais riqueza semântica do que “entrega a domicílio”? Ou “coffee break” exprimiria melhor a ideia de um intervalo “para o café”? Aceitemos, como exemplo, que “live” ou “site” carreguem um conceito mais amplo que “ao vivo” ou “sítio”, visto que se referem a situações novas. Muito bem! Então, que tal aportugues­armos para “laive” e “saite” (aliás, Millor escrevia ‘saite”!) como já fizemos com “abajur” e “futebol”? Imaginar que um “i” em português soe como “ai” parece-me totalmente descabido.

Dói ver como se tem lidado com a “última flor do Lácio”, de tanta tradição e que nos deu obras imortais (e nem pretendo abrir discussão sobre outra tendência discutível, a de “novipalavr­as” numa pretensa “linguagem neutra”). Sinceramen­te, torço para que o português, que conhecemos e que respeitamo­s, preserve sua forma e riqueza. Retomando Hamlet, “o resto é silêncio”. •

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