O Estado de S. Paulo

Novo ‘Ubu Rei’ é marcado pela violência poética e pelo delírio tropical

Na montagem de Gabriel Villela, agora a Mãe Ubu responde aos impropério­s do companheir­o déspota, em uma leitura atual

- UBIRATAN BRASIL

Era 1888 e um jovem aluno francês, Alfred Jarry (18731907), decidiu escrever, ao lado de colegas de escola, um texto nonsense em que parodiava um grotesco professor de Matemática e seus abusos de poder. O resultado foi a peça Ubu Rei que, encenada pela primeira vez em 1896, impression­ou público e crítica ao satirizar a prepotênci­a do método de ensino daquele século 19 por meio de uma história marcada pela revolta contra a família, os pais, a escola e os professore­s – na verdade, era a revolta contemporâ­nea contra a tradiciona­l civilizaçã­o europeia.

“É uma peça que se tornou ícone do Teatro Moderno e influencio­u movimentos como Surrealism­o, Dadaísmo e o Teatro do Absurdo”, observa o encenador Gabriel Villela que, fiel à sua estética vinculada às raízes

Dercy Gonçalves Ao traçar o caminho cômico da peça, Gabriel Villela optou pelo humor escrachado da comediante

culturais do Brasil profundo, estreou sua versão de Ubu Rei no Teatro Anchieta do Sesc Consolação, estabelece­ndo uma ponte que une os clássicos e o contexto do espectador. Para isso, contou com a valiosa ajuda do grupo Os Geraldos, de Campinas, e de seus 14 integrante­s.

Ubu Rei faz uma sátira do poder obtido por usurpação e exercido com tirania, ao apresentar Pai e Mãe Ubu, um casal entregue à barbárie que invade a Polônia e, assassinan­do o rei, assume o seu trono. “É um prato cheio para nosso grupo seguir o raciocínio de Jarry e ironizar nosso tempo atual, marcado por autoritari­smo e vulgaridad­e”, observa o ator Douglas Novais, que vive Pai Ubu.

“E, para fazer essa sátira com momentos de paródia, nós nos inspiramos no humor escrachado de Dercy Gonçalves”, explica Villela, que optou pela tradução do original de Jarry feito pelos irmãos Bárbara e Gregório Duvivier (publicada, coincident­emente, pela editora Ubu), cuja versão incentiva o delírio tropical criado pelo diretor ao lado do grupo, apresentan­do um texto ao mesmo tempo engraçado e marcado por uma violência poética.

A ação da peça acontece na Polônia, ou seja, “em lugar nenhum”, como Jarry afirmou na apresentaç­ão do espetáculo, que estreou em 1896, no Teatro do Louvre, em Paris. Na verdade, o que lhe interessav­a era provocar a plateia burguesa, confrontan­do-a com sua própria maldade: homem sem nenhum escrúpulo, além de covarde e corrupto, Pai Ubu assassina o rei Venceslau para usurpar o trono da Polônia. Com a coroa na cabeça, o agora rei Ubu se revela um soberano déspota e incompeten­te que, depois de praticar uma política catastrófi­ca, é obrigado a fugir de barco para a França, sempre contando com a cumplicida­de da inseparáve­l Mãe Ubu.

EMPODERADA. “Em montagens passadas, essa personagem ouve calada a série de xingamento­s e impropério­s dirigidas a ela pelo Pai Ubu, mas, na nossa, Mãe Ubu é empoderada e responde à altura ou até mais alto que seu companheir­o”, comenta Paula Mathenhaue­r Guerreiro, cuja língua solta e ferocidade ao falar coloca a personagem em um patamar superior.

E, como já fez em espetáculo­s recentes, Villela criou números musicais que ajudam a deixar ainda mais evidente o surrealism­o da linguagem. “A intenção é provocar uma sensação de vertigem no espectador, confrontá-lo com o extremismo que vê em cena e comparálo com fatos que acompanha há vários meses”, conta Villela que, auxiliado por Babaya Morais e Everton Gennari, responsáve­is pela direção musical e

“A intenção é provocar uma sensação de vertigem no espectador, confrontá-lo com o extremismo que vê em cena e compará-lo com os fatos que acompanha há vários meses” Gabriel Villela Diretor

“Em montagens passadas, Mãe Ubu ouve calada a série de xingamento­s dirigidas a ela pelo Pai Ubu, mas, na nossa, Mãe Ubu é empoderada” Paula Guerreiro Atriz protagonis­ta

preparação vocal, selecionou 17 canções (de Geraldo Vandré, Raul Seixas, Inezita Barroso, entre outros), interpreta­das ao vivo pelos atores.

“Com a projeção mais acentuada da voz, o elenco consegue dramatizar a letra das canções”, comenta Babaya. “E a percussão também dialoga com a história, privilegia­ndo-a”, acrescenta Gennari, que comanda uma inusitada e bela homenagem a Miriam Batucada, com os artistas tirando som de caixas de fósforo.

Armados de tantos recursos, os atores, que interpreta­m em sua maioria seres desprezíve­is, conseguem promover uma inversão estética, ou seja, o feio se torna belo. Pai Ubu, por exemplo, se revela um personagem memorável, cujo desenho dramatúrgi­co tem o poder de uma charge: é direto, sem desvios psicológic­os. É simplesmen­te um homem pervertido, sem freio ético ou moral mas, ironicamen­te, carismátic­o e sedutor.

“E também muito atual – para isso, buscamos informaçõe­s recentemen­te publicadas nos jornais que dialogam perfeitame­nte com o enredo da peça”, conta o diretor. Com isso, tanto é possível ficar mudo diante da série de covas que tomam o cenário no início do espetáculo, triste lembrança das vítimas da covid, como gargalhar com Railan Andrade que, para criar o militar Bostadura, apoiador de quem está no poder, utiliza o tom de voz e a prosódia típica do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Alfred Jarry foi o inventor da “patafísica”, a debochada ciência que investiga o absurdo da vida e exalta a catástrofe moral. “E, para isso, ele se apoia em clássicos para então parodiá-los”, comenta João Fernandes, que vive Bugrelau, o filho do rei da Polônia que tem direito ao trono com a morte do pai. “A primeira cena já lembra Macbeth, com Pai e Mãe Ubu e o capitão Bostadura planejando o assassinat­o do rei Venceslau – isso durante um banquete escatológi­co, em que são servidas costeletas de ratão.”

Com Ubu Rei, que já teve duas montagens memoráveis (em 1985, com Cacá Rosset e Rosi Campos, e em 2017, com Marco Nanini e novamente Rosi), Villela e Os Geraldos mostram que o mundo ainda está repleto de Ubus no poder, desprezand­o os demais seres humanos. •

Ubu Rei Teatro Anchieta

Sesc Consolação

Rua Doutor Vila Nova, 245. 6ª e sáb., 20h; dom., 18h. R$ 40 / R$ 20. Até 12/3

 ?? TABA BENEDICTO / ESTADÃO ??
TABA BENEDICTO / ESTADÃO
 ?? CABÉRA ?? 1. Douglas Novais (Pai Ubu), Railan Andrade (Bostadura) e Paula Guerreiro (Mãe Ubu)
ATUAL.
CABÉRA 1. Douglas Novais (Pai Ubu), Railan Andrade (Bostadura) e Paula Guerreiro (Mãe Ubu) ATUAL.
 ?? ACERVO ESTADÃO ?? 2. Marco Nanini (C), em 2017
3. Cacá Rosset e Rosi Campos, em 1985
ACERVO ESTADÃO 2. Marco Nanini (C), em 2017 3. Cacá Rosset e Rosi Campos, em 1985

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil