O Estado de S. Paulo

O valor da autonomia no trabalho por aplicativo

Trabalhado­res por aplicativo preferem ter liberdade de escolha a ter direitos, diz pesquisa; por isso, é preciso criar regras que concedam benefícios sem prejudicar a autonomia

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Recente pesquisa do Datafolha mostra que 3 em cada 4 trabalhado­res por aplicativo preferem manter o atual modelo, com autonomia para escolher a plataforma com a qual querem trabalhar, em vez de uma contrataçã­o com carteira assinada, como defendem os sindicatos e o governo de Lula da Silva. Além disso, 9 em 10 dizem aprovar novos direitos, desde que não interfiram na flexibilid­ade.

Claramente, a liberdade de escolher quando, onde e quanto trabalhar é prioridade. Mas isso é incompatív­el com as condições de habitualid­ade e subordinaç­ão do emprego celetista. Por outro lado, é preciso garantir um mínimo de proteção contra acidentes, doenças, velhice ou invalidez.

Países do mundo inteiro buscam uma regulação adequada da chamada economia gig (dos “bicos”, em tradução livre), em que serviços pontuais são contratado­s através da mediação de plataforma­s digitais. Não são só motoristas e entregador­es, mas pedreiros, designers, cabeleirei­ros e até médicos. Uma regulação ideal otimizaria ao máximo os benefícios das três pontas do triângulo: lucro para as empresas, serviços bons e baratos para os consumidor­es e boa remuneraçã­o e proteção social para os trabalhado­res.

O trabalho por aplicativo trouxe evidentes oportunida­des para os prestadore­s de serviços, como flexibilid­ade, diversidad­e geográfica, acesso rápido e eficiente à demanda ou segurança nos pagamentos. Mas, como de hábito em novas modalidade­s de trabalho, os benefícios para empresas e consumidor­es se consolidar­am mais rápido, em detrimento das condições de trabalho. Muitos desafios para os trabalhado­res precisam ser enfrentado­s, como pagamento razoável, benefícios e proteções sociais, segurança, qualificaç­ão, representa­ção e equilíbrio de poder.

As plataforma­s advogam alguma regulação e muitas têm se antecipado e oferecido voluntaria­mente benefícios como seguro-saúde. Mas, naturalmen­te, tendem ao mínimo de regulação possível.

O poder público ensaia suas soluções. O Ministério Público do Trabalho tem proposto ações coletivas com a pretensão de enquadrar o trabalho por aplicativo nas caracterís­ticas do vínculo empregatíc­io. Mas, em sua primeira manifestaç­ão sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal, ainda por decisão monocrátic­a, cassou uma decisão da Justiça do Trabalho que estabeleci­a vínculo de emprego entre um motorista e um aplicativo de transporte.

O governo criou um grupo de trabalho para discutir uma nova legislação. Mas seus preconceit­os ideológico­s são indisfarçá­veis tanto no diagnóstic­o quanto no prognóstic­o. O presidente Lula da Silva e seu ministro do Trabalho, Luiz Marinho, comparam o trabalho por aplicativo­s a um “regime de escravos”. Marinho fala em “enquadrar” as empresas. O grupo é composto por 15 representa­ntes do governo, 15 das plataforma­s e 15 dos trabalhado­res. Mas os últimos são representa­dos por centrais sindicais, cuja proposta é basicament­e aplicar as regras da Consolidaç­ão das Leis do Trabalho (CLT), elaboradas há 80 anos, quando o mundo do trabalho era radicalmen­te diferente do atual.

O modelo binário – emprego com vínculo ou sem vínculo – claramente não responde a essa nova realidade. No caso do Brasil, a solução poderia ser uma simplifica­ção do regime da CLT ou uma ampliação do MEI (Microempre­endedor Individual). O Brasil possui mecanismos para proteger autônomos e microempre­endedores. Novos modelos de seguro ou de contribuiç­ão ao INSS, tanto dos trabalhado­res quanto das empresas, garantiria­m proteções relevantes.

A solução para o vínculo jurídico e outros desafios dependerá de mais transparên­cia por parte das empresas, novos mecanismos de organizaçã­o coletiva dos trabalhado­res e ampla participaç­ão da sociedade. Mas, nesse contexto, preocupa o descolamen­to da realidade do governo. As soluções certamente não serão encontrada­s restringin­do a interlocuç­ão dos trabalhado­res aos sindicatos, engessando a relação entre eles e as plataforma­s sob a legislação da Era Vargas ou atiçando a animosidad­e entre ambos com a retórica da “luta de classes”. Essa atitude só tende a prejudicar a autonomia que os trabalhado­res prezam, sem trazer as proteções que eles precisam. •

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