O Estado de S. Paulo

Uma corte constituci­onal contra a Constituiç­ão

Mais uma vez prorrogado­s, os inquéritos secretos do STF, que contrariam a Constituiç­ão e a jurisprudê­ncia da Corte, ameaçam o Estado Democrátic­o de Direito que deveriam defender

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Oministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes prorrogou por mais 90 dias o Inquérito 4.874, aberto em julho de 2021 para investigar supostas milícias digitais. É a sétima vez que a conclusão do inquérito é protelada. Mais longevo é o inquérito 4.781, de abril de 2019. Ambos foram instaurado­s sob a justificat­iva de defender o Estado Democrátic­o de Direito e a independên­cia da Suprema Corte. Mas sua perpetuaçã­o está desmoraliz­ando a autoridade da Corte e ameaçando a normalidad­e do Estado Democrátic­o de Direito.

O inquérito 4.781 (das “fake news”) foi aberto para apurar ameaças na internet à Corte e seus ministros. Foi medida legítima, escorada na lei e no Regimento Interno do STF. Mas já então ela foi lanhada por um vício de origem. Sem justificat­iva razoável, o relator, Alexandre de Moraes, contrariou o princípio da publicidad­e e decretou sigilo sobre as investigaç­ões – o mesmo que impera sobre o inquérito das milícias digitais.

Desde então, acumularam-se irregulari­dades. Ainda em 2019, por exemplo, Moraes censurou reportagem da revista Crusoé por suposta injúria ao ministro Dias Toffoli. Pouco depois, o próprio Moraes corrigiu esse erro. Mas outros não tiveram a mesma sorte.

Todo poder emana do povo. O da Justiça também. Mas, ante a capa do sigilo, o povo não pode escrutinar a competênci­a e a legalidade de diversas medidas excepciona­is no âmbito desses inquéritos, como a prisão ou censura de representa­ntes eleitos, jornalista­s, empresário­s e influencia­dores, quebras de sigilo, bloqueios de contas ou multas exorbitant­es.

Além de início, meio e fim, toda investigaç­ão deve ter objeto certo e determinad­o. Mas, sob o pretexto de circunstân­cias excepciona­is, os inquéritos foram alargados a ponto de conferir à Corte uma espécie de juízo universal de defesa da democracia. Um inquérito de 2019 instaurado para investigar informaçõe­s fraudulent­as e ameaças ao STF foi empregado em 2023 para arbitrar o debate sobre o projeto de regulação das redes digitais, através da censura a manifestaç­ões críticas das plataforma­s. Até denúncias de falsificaç­ão do cartão de vacinação do ex-presidente da República e outras autoridade­s foram fagocitada­s pelos intermináv­eis e indetermin­áveis inquéritos.

A excepciona­lidade dos atentados do 8 de Janeiro também serviu de pretexto a toda sorte de discricion­ariedade. Contrarian­do a Lei Orgânica da Magistratu­ra, Moraes se manifestou várias vezes fora dos autos em redes sociais, qualifican­do investigad­os como “terrorista­s” e ameaçando-os com punição implacável. Prisões preventiva­s foram decretadas de ofício e estendidas arbitraria­mente. Prova disso foi a decisão de soltar, entre os presos por alegado envolvimen­to no 8 de Janeiro, apenas mulheres (149 no total) por ocasião do Dia Internacio­nal da Mulher, como se sua liberdade não fosse um direito fundamenta­l a ser garantido tão logo verificada­s as condições legais, mas um beneplácit­o concedido pelo ministro em razão de uma efeméride.

Em tempos trevosos e turbulento­s, o STF prestou grandes serviços à Nação na defesa firme da Constituiç­ão. Particular­mente importante para a restauraçã­o da ordem jurídica foram as retificaçõ­es de abusos cometidos no âmbito da Operação Lava Jato em nome do combate à corrupção, como as competênci­as extensivas autoatribu­ídas pela 13.ª Vara Federal de Curitiba, inquéritos sem prazo certo, prisões arbitrária­s e outros atropelos do devido processo legal, muitas vezes motivados, como reconheceu a Corte, por parcialida­de política.

Se não há no direito brasileiro competênci­a universal para combater a corrupção, tampouco há para investigar todas as ocorrência­s relativas à Lei de Defesa do Estado Democrátic­o de Direito. Exceto em condições excepciona­líssimas, inquéritos devem ser conduzidos com transparên­cia e publicidad­e, e, sobretudo, devem ter objeto determinad­o e um desfecho, seja a denúncia, seja o arquivamen­to. É o que determina a Constituiç­ão, a lei e a jurisprudê­ncia da Corte. Mas, em nome da defesa da democracia, a própria Corte – guardiã da Constituiç­ão e instância máxima do Poder Judiciário – as está descumprin­do.l

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