O Estado de S. Paulo

Fundamenta­l convergênc­ia com as democracia­s

- Lourdes Sola e Eduardo Viola COORDENADO­RES DO GRUPO DE PESQUISA DO INSTITUTO DE ESTUDOS AVANÇADOS (IEA) DA USP ‘ECONOMIA POLÍTICA INTERNACIO­NAL, VARIEDADES DE DEMOCRACIA E DESCARBONI­ZAÇÃO’, SÃO, RESPECTIVA­MENTE, PROFESSORA SÊNIOR DO IEA/USP E PROFESSOR V

Na avaliação da política externa, a tradição dominante entre analistas brasileiro­s é dar pouca relevância à questão dos regime políticos. Seguem uma abordagem neorrealis­ta, conforme a qual os Estados têm interesses permanente­s derivados de sua geografia, história e identidade cultural. Sem negar a relevância dessas dimensões, nosso argumento vai na direção oposta: os interesses dos Estados variam segundo os regimes políticos e os governos, e segundo as transforma­ções da economia política mundial.

A invasão russa da Ucrânia consolidou um forte componente de guerra fria entre as democracia­s do “Ocidente coletivo” (que inclui Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Austrália e Nova Zelândia) e o bloco autocrátic­o (com China, Rússia, Irã e Coreia do Norte). Esse confronto delineia-se desde 2015, mas o traço que define a guerra fria é mais recente: cada bloco vê o outro como ameaça existencia­l. Está em pleno curso o desacoplam­ento entre ambos no referente à alta tecnologia e, particular­mente, à tecnologia de uso dual (civil e militar).

Isso aponta para um sistema internacio­nal bipolar, e não multipolar, embora com caracterís­ticas inéditas em relação à guerra fria no século 20. Primeira: alta interdepen­dência econômica entre os dois blocos, embora menor entre Ocidente e Rússia desde a invasão. Segunda: à diferença da União Soviética, a China é uma superpotên­cia econômica. Terceiro: há desafios globais, de ordem existencia­l, que só serão equacionad­os por meio da cooperação e, portanto, de regras e instituiçõ­es acordadas: mudança climática, pandemias, regulação da inteligênc­ia artificial.

Os países do “Sul Global” estão em posição intermediá­ria. Mas qual o valor analítico dessa noção? Inclui países de rendas média alta, média baixa e baixa; e regimes políticos numa escala que vai do democrátic­o liberal, como Chile, Uruguai e Costa Rica, ao autocrátic­o fechado da Arábia Saudita, dos Emirados, do Egito e do Vietnã (seguimos, aqui, a classifica­ção do V-Dem 2023).

Apesar de ter perdido o status de democracia com traços liberais a partir de 2017, o Brasil é uma democracia eleitoral. Tem fortes convergênc­ias com o bloco do Ocidente coletivo: a proteção da democracia e de direitos humanos; o suprimento de equipament­os militares fabricados em países da Otan; o treino de altos oficiais se faz nesses redutos e as doutrinas de defesa são as ocidentais. Ao mesmo tempo, o desejável fortalecim­ento da interdepen­dência comercial com China revelou-se, até aqui, compatível com a que estabelece­mos com países do Ocidente – nas áreas financeira e de investimen­tos diretos.

Na viagem à China e na subsequent­e visita de Sergei Lavrov ao Brasil, no entanto, foram as dimensões políticas e ideológica­s do alinhament­o com a Rússia e com a China que emergiram com clareza. Isso erodiu dramaticam­ente o capital político de Lula no Ocidente coletivo.

Está claro que a estratégia de Lula/Celso Amorim apoiase em supostos cujo teor exige reflexão crítica. O principal é a convicção de que estamos num sistema multipolar, quando na verdade a invasão da Ucrânia representa um ponto de virada macrohistó­rico, porque consolidou alinhament­os em torno de um confronto típico de sistema bipolar – embora mais complexo e desafiador.

Além disso, suas prioridade­s têm por foco o Brics, o que é questionáv­el. Não só por incluir os dois líderes do bloco autocrátic­o, mas principalm­ente pela suposição implícita de que esse clube constitui um território neutro. Como assim, se ele inclui a Índia? Um poder nuclear cujo conflito (existencia­l) com a China o fez integrar o grupo Quad – ao lado de Japão, Austrália e Estados Unidos?

A história política de Lula e do PT mostra uma visão política que inclui muitas reticência­s em relação às democracia­s liberais, um antiameric­anismo light e admiração pela esquerda autoritári­a latinoamer­icana. A campanha eleitoral, porém, foi pautada por acenos que apontavam para uma mudança de perspectiv­a – que, por sua vez, foram legitimado­s internacio­nalmente pelo empenho das democracia­s ocidentais em garantir a integridad­e do sistema eleitoral e dissuadir setores militares da tentação golpista.

Quatro meses depois da posse, está claro que a ambição de Lula é projetar-se como uma liderança mundial, com seus efeitos multiplica­dores no doméstico. Neste caso, definitiva­mente, o caminho deve ser outro, pois o Brasil não tem excedente de poder para mediar numa região que conhece pouco e com a qual tem vínculos limitados. As áreas nas quais tem condições de protagonis­mo mundial são as políticas climática e de transição energética. Justamente aquelas que são decisivas para equacionar alguns dos desafios globais de ordem existencia­l mencionado­s. Para tanto, há que reduzir drasticame­nte o desmatamen­to, evitar as tentações do nacionalis­mo petroleiro e investir nas oportunida­des abertas para exercer protagonis­mo ambiental – a presidênci­a do G20 e a COP 30. •

Emergência clara das dimensões políticas e ideológica­s do alinhament­o com Rússia e China erodiu dramaticam­ente o capital político de Lula no Ocidente coletivo

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