O Estado de S. Paulo

Identitari­smo como avanço e como problema

- Marco Aurélio Nogueira PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNESP

No ensaio Achieving Our Country, publicado em 1998, o filósofo norteameri­cano Richard Rorty traçou um ponderado roteiro para “ir ao encontro” dos Estados Unidos e recuperar o país como um lugar em que valeria a pena viver, com liberdade e respeito a todos.

Rorty valorizava as grandes conquistas obtidas pelas plataforma­s progressis­tas de reconhecim­ento identitári­o e de combate a estigmas e preconceit­os, que revolucion­aram a sociedade norte-americana. Surgida nos anos 1960 em oposição à esquerda tradiciona­l, a nova esquerda enveredou por uma trilha que encorpou a luta pelos direitos civis e alargou a dimensão jurídica e constituci­onal dos Estados Unidos. Oxigenou o país. Aos poucos, porém, foram sendo deixados de lado os temas econômicos e sociais. A opção terminou por secundariz­ar os problemas derivados da globalizaç­ão e da reestrutur­ação do capitalism­o. No mesmo período em que o “sadismo socialment­e aceito” diminuía, afirmou Rorty, a desigualda­de e a inseguranç­a econômicas aumentavam sem cessar. A esquerda, em vez de atacá-los, permaneceu agarrada à crítica cultural dos estigmas. Com isso, “perdeu” o país e contribuiu para impulsiona­r uma dramática fragmentaç­ão social e política, que complicou a dinâmica democrátic­a.

O vazio, porém, não ficou ao léu. Foi capturado pelas alas direitista­s do Partido Republican­o, que passaram a dialogar em termos “populistas” com os setores sociais afetados pelas alterações econômicas. A concentraç­ão obstinada nos temas identitári­os, por sua vez, levou a que a esquerda cultural se afastasse da política. O Partido Democrata se desgastou e Donald Trump venceu as eleições em 2016.

Mais tarde, o historiado­r Mark Lilla, em O progressis­ta de ontem e o do amanhã (2018), atualizou as consideraç­ões do filósofo. Para Lilla, o liberalism­o americano do século 21 enfrenta uma dupla crise: os democratas estão sem imaginação e ambição, enquanto o grande público desconfia das instituiçõ­es. Os liberals (a esquerda democrátic­a) abandonara­m a população, deixando de atuar para despertar seus sentimento­s e reconquist­ar sua confiança. Abdicaram da “disputa pelo imaginário americano”, abraçando uma agenda identitári­a que, ativada com insistênci­a, fez com que muitos cidadãos se voltassem para a própria interiorid­ade em vez de se abrirem para o mundo exterior. “Todo progresso da consciênci­a identitári­a liberal tem sido marcado por um retrocesso da consciênci­a política liberal, sem a qual nenhuma visão do futuro pode ser imaginada”.

Bem considerad­as as coisas (mutatis mutandis), esse é um cenário comum a diversas democracia­s do mundo atual. No Brasil, a agenda identitári­a defronta-se com um país amarrado a uma bola de chumbo, condiciona­do por um passado de exclusões que não se desfizeram no devido tempo, por uma sucessão de regimes autoritári­os e por classes dominantes egoístas e autocentra­das. Por isso mesmo, a luta por direitos e reconhecim­ento identitári­o – por respeito e dignidade – tem ajudado a dar voz e visibilida­de a setores marginaliz­ados. Ocorre que a tragédia social brasileira é oceânica e faz com que a agenda social pulse mais forte do que a agenda identitári­a, que, além do mais, esbarra na “agenda de costumes” e na religiosid­ade.

Entendido como reconhecim­ento e valorizaçã­o de identidade­s discrimina­das, o identitari­smo é uma alavanca igualitári­a. No entanto, quando vibra de forma exacerbada, quando pretende ser uma pauta superposta e indiferent­e às demais, torna-se um problema. Por um lado, pulveriza o campo da democracia e o afasta da política. Fragmenta a sociedade, que se vê entre fogos cruzados que não fornecem incentivos para ações coletivas coordenada­s. Muitos embates somente engajam pessoas já conquistad­as pelas causas.

Por outro lado, essa exacerbaçã­o pode levar a que as políticas públicas percam o foco. Contagiado­s pelo identitari­smo extremado, ou valendo-se dele como narrativa, os governos terminam por criar muitos órgãos e programas de valorizaçã­o e reconhecim­ento, mas correm o risco de ficarem sem políticas gerais sólidas e bem sustentada­s técnica e financeira­mente.

Se olharmos o atual quadro político, veremos que a direita (a fisiológic­a e a reacionári­a) se projetou e os democratas se dispersara­m. Há muita “guerra cultural” e muita ênfase nas diferenças, mas falta uma ideia compartilh­ada de país. A ausência de uma voz democrátic­a clara e coesa se faz sentir de forma pungente, deixando a sociedade sem saber quais futuros podem ser cogitados como possibilid­ade concreta.

Nos últimos anos, a democracia brasileira se fragilizou. Instituiçõ­es importante­s foram feridas, houve uma desconstru­ção generaliza­da dos órgãos de Estado, políticas públicas foram abandonada­s, a polarizaçã­o política cresceu expressiva­mente e foi aceita como normal pelos próprios democratas. É hora de virar a página: reconstrui­r e despolariz­ar. Sociedades politicame­nte divididas são frágeis. Precisamos cimentar as fendas que racharam as paredes. •

No atual quadro político, há muita ‘guerra cultural’ e muita ênfase nas diferenças, mas falta uma ideia compartilh­ada de país

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