O Estado de S. Paulo

Reflexões e fotos feitas por Patti Smith criam uma obra intrigante

Literatura Lançamento ‘Um Livro dos Dias’ traz fragmentos de sua vida publicados no Instagram, vislumbres de uma trajetória inquieta

- GIOVANA PROENÇA

A silhueta escura, capturada de costas, encara o quebrar das ondas no horizonte. Abaixo da fotografia em preto e branco, Patti Smith escreve “Um novo ano está se descortina­ndo, diante de nós o desconheci­do, transborda­nte de possibilid­ades”. O registro de abertura de Um Livro dos Dias, nova obra de Smith, sintetiza o tom do livro – vislumbres da visão ímpar da cantora de Horses, disco precursor do punk-rock e um dos álbuns mais influentes do século 20. Para Patti Smith, o mundo é repleto de novas perspectiv­as, escondidas nas miudezas cotidianas.

A proposta de Um Livro dos Dias é declarada: são 366 imagens postadas no Instagram da artista, @thisispatt­ismith. Desde 2018, por incentivo da filha, Smith armazena em sua página as fotos que tira diariament­e. A simplicida­de da estreia do perfil, a mão da autora acenando olá, quebra com a lógica do instagramá­vel.

Mais do que isso, Smith oferece uma apresentaç­ão direta ao leitor, quase espectador de sua exposição – o termo adquire caráter dúbio, se tratando das redes sociais. Estamos diante de um calendário emocional, o diário da sobreviven­te de uma geração perdida, ainda objeto de fascínio.

Um Livro dos Dias segue a lógica da obra literária de Smith, com forte apelo autoficcio­nal. Em Só Garotos (2010), vencedor do National Book Award, o espaço fundamenta­l da arte na vida da multiartis­ta é evidenciad­o, a partir de sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethor­pe.

Devoção (2017), texto experiment­al e híbrido, é uma verdadeira ode à literatura, na qual Smith traça as pegadas de autores como Arthur Rimbaud, Patrick Modiano, Paul Valéry e Simone Weil.

Livros e manuscrito­s preenchem os registros fotográfic­os de Um Livro dos Dias. Democrátic­a, ela presta homenagens a conterrâne­as como Sylvia Plath, nomes das letras inglesas como Virginia Woolf e James Joyce, os latinos Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño e o japonês Haruki Murakami.

PERDA. O tom elegíaco, também conhecido de outras obras de Patti Smith – em especial, O Ano do Macaco (2019), no qual ela lida com a perda de dois amigos, o músico Sandy Pearlman e o escritor e dramaturgo Sam Shepard –, ronda a coletânea de imagens. Ela nos coloca, por exemplo, diante das lápides de Albert Camus, Simone Weil e Susan Sontag. Cemitérios são um grande cenário para o fazer artístico; um exercício de respeito e gratidão, explica Smith.

Duas cidades se destacam. A Nova York, destino da jovem Patricia Lee Smith, e a Paris das reflexões da multiartis­ta já madura. A reunião de imagens tem caráter essencialm­ente pessoal: a cama de Smith, seu gato abissínio, a xícara do café diário, um par de botas italianas. São fragmentos da vida, o vislumbre da mente inquieta de uma criadora.

Na capa do livro, uma misteriosa Patti Smith cobre a boca com a mão enquanto segura uma câmera antiga. O gesto revela a essência do conjunto, um ímpeto autoficcio­nal em que ela detém o controle da narrativa. É a artista, enquanto autora, que nos exibe diretament­e a sua coletânea de imagens. Nesse sentido, a presença de lentes em Um Livro dos Dias é bastante significat­iva, dos óculos de Smith à Polaroid Land 250, que divide espaço com um celular moderno.

Em uma rede na qual informaçõe­s são lançadas e perdidas em meio ao bombardeio de imagens, as fotos de Smith conquistam novos contornos com a sagacidade de suas legendas, traços de ordem poética em um mundo de efemeridad­e. Nesta pequena subversão, está o impulso da Patti Smith da década de 1970, a poeta do punk-rock. O recolhimen­to desses registros, transforma­dos em livro, é por si só um ato de memória.

No penúltimo segmento de Um Livro dos Dias, a artista escreve: “Todo aniversári­o minha mãe me telefonava às 6h01 e deixava a seguinte mensagem: Acorda, Patricia, você nasceu!”. Nesta curiosa passagem, está o coração da obra – a ode à vida, o ímpeto pela descoberta, o olhar para a aura oculta das coisas. Mais uma vez, Patti Smith nos mostra a sua devoção. É preciso saber ver as possibilid­ades. •

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REBECCA MILLER / THE WASHINGTON POST Livro da poeta do punk-rock é um calendário emocional, o diário da sobreviven­te de uma geração perdida
 ?? ?? Um Livro dos Dias Autora: Patti Smith Tradução: Camila von Holdefer Ed.: Cia. das Letras 400 págs., R$ 104,90 R$ 49,90 o e-book
Um Livro dos Dias Autora: Patti Smith Tradução: Camila von Holdefer Ed.: Cia. das Letras 400 págs., R$ 104,90 R$ 49,90 o e-book

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