O camarote mais sofisticado
É um espaço que isola para exibir – em uma sociedade desigual, é vital mostrar o privilégio
Mestre Houaiss informa que o termo vem do espanhol e finca raízes no século 16. Camarote é um espaço reservado em um teatro, aberto, em direção ao palco. O mais importante: possui divisórias que demarcam uma exclusividade. Fundamental: mesmo que poucos possam entrar nele, é de extrema relevância que os demais espectadores vejam que há um camarote. Fechado para evitar o afluxo dos indistintos abaixo, mas aberto para gerar a necessária admiração que fortalece o narciso dos ocupantes. O camarote isola para exibir.
Ver a “vida de camarote” é ter uma posição confortável diante dos fatos. No seio de uma sociedade desigual, é vital mostrar o privilégio. Criticase, no carnaval, a “camarotização” de um festejo que deveria ter essência popular. Na década passada, Alexander de Almeida ficou famoso (e atacado) como o “rei do camarote”.
A “camarotização” do mundo acompanhou o crescimento da igualdade. A sociedade pós-Revolução Francesa foi desenvolvendo o cidadão e sua isonomia diante da lei. Não havia mais títulos, roupas, genealogias que precediam, demarcavam e separavam o duque dos plebeus. Sua Graça era diferente, ainda que nu. A guilhotina aparou arestas, porém manteve o sonho: “Como posso escapar do comum?”.
Em um mundo de cidadania horizontal, precisamos nos defender do ataque. Ficou famosa a resposta de uma “pessoa” no Rio: “Cidadão não! Engenheiro civil, formado, melhor do que você”. Título honroso em 1789, como o conceito pode ter sido interpretado, em 2020, como ataque?
Não posso e não quero ser cidadão, pois sou a pessoa que conquistou uma luz diferente pelo meu estudo. É vedado que eu invoque um título de nobreza, ainda que ele abunde até para venda na internet. Onde posso escapar da insuportável igualdade? A resposta é o camarote.
O carro é um tipo de camarote que me redime do grupão no transporte público. As classes executiva e primeira são camarotes. Abundam privilégios como entrada VIP. Nos aeroportos do Brasil, surge um novo modelo de fast track para quem possuir determinado cartão de crédito. Até na prisão, existia o camarote para o dono de um diploma de curso superior (aliás, para quem não sabe, esse privilégio foi extinto).
O dinheiro antigo valoriza a exclusividade mais do que a ostentação. Melhor, diante do arrivismo do capital recente, carrega um novo tipo de exibicionismo: não o preço, todavia a tradição e o conhecimento. Mesmo entre ricos, insiste-se em fazer separações, criar gavetas, estabelecer hierarquias. O orgulho existe, olhando para baixo e para o lado.
Dizem que dinheiro jamais comprará tradição. “O que seria tradição?” – pensa alguém maroto. É quando sua origem humilde já foi apagada pelos anos e não deixou rastros. Paupérrimos imigrantes portugueses do século 18 enriqueceram e olham com desdém absoluto para estes recém-chegados do 20. Quando os traficantes de escravizados, todos os grileiros de terras, os apresadores de indígenas e os toscos em geral tiverem apagado tais manchas das suas árvores genealógicas, serão bem-vindos ao mundo exclusivo do camarote da nobreza tropical. Tradição familiar é, quase sempre, esquecimento penal.
O camarote é um sonho. Nunca devemos confundir os cidadãos como se fossem os porcos da Revolução dos Bichos de Orwell. Sempre haverá um suíno sábio para adulterar o sétimo mandamento da igualdade. Alguns serão mais iguais do que os outros. O porco do camarote é a prova da universalidade da aspiração mamífera. Igualdade é slogan político, raramente desejo universal.
Talvez o camarote seja a grande questão da ordem social. Quem pode acessá-lo? Quem possui direito? A partir de qual critério? No momento em que substituímos a noção política iluminista pelo direito do consumidor, o grande sentido de exclusividade diz respeito ao poder da compra. O ataque aos “privilégios” esconde nosso desejo de expulsar aquele grupo indigno de um áureo espaço isolado para que possamos estar lá. Mais do que justiça social, queremos migração de corpos. Abominamos a igualdade e desejamos a exclusão, desde que ela não nos atinja.
Num dia, acompanhando o fenômeno do Círio de Nazaré no Pará, isolado no lindo camarote da minha amiga Fafá de Belém, observava aquela massa extraordinária. Era uma varanda alta e bem separada do grande grupo. Um colega famoso disse que iria descer e acompanhar o cortejo da imagem, segurando a corda benta. Eu indaguei: “Por quê?”. Ele me disse que apenas lá, no empurra-empurra plebeu, realmente se sentia a epifania do Círio. Fiquei no espaço reservado, pensando: será que o futuro da exclusividade é poder abrir mão de todo o privilégio para dizer aos amigos, em São Paulo, que eu me entreguei entre fiéis ao festejo diluído? Talvez o camarote mais refinado seja este: eu peguei na corda, mas você ficou isolado. Esperança de uma experiência ainda mais sofisticada: ser parte da corda que arrasta, mas não mais do muro que separa. •