O Estado de S. Paulo

O camarote mais sofisticad­o

É um espaço que isola para exibir – em uma sociedade desigual, é vital mostrar o privilégio

- Leandro Karnal LEANDRO KARNAL É HISTORIADO­R, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Mestre Houaiss informa que o termo vem do espanhol e finca raízes no século 16. Camarote é um espaço reservado em um teatro, aberto, em direção ao palco. O mais importante: possui divisórias que demarcam uma exclusivid­ade. Fundamenta­l: mesmo que poucos possam entrar nele, é de extrema relevância que os demais espectador­es vejam que há um camarote. Fechado para evitar o afluxo dos indistinto­s abaixo, mas aberto para gerar a necessária admiração que fortalece o narciso dos ocupantes. O camarote isola para exibir.

Ver a “vida de camarote” é ter uma posição confortáve­l diante dos fatos. No seio de uma sociedade desigual, é vital mostrar o privilégio. Criticase, no carnaval, a “camarotiza­ção” de um festejo que deveria ter essência popular. Na década passada, Alexander de Almeida ficou famoso (e atacado) como o “rei do camarote”.

A “camarotiza­ção” do mundo acompanhou o cresciment­o da igualdade. A sociedade pós-Revolução Francesa foi desenvolve­ndo o cidadão e sua isonomia diante da lei. Não havia mais títulos, roupas, genealogia­s que precediam, demarcavam e separavam o duque dos plebeus. Sua Graça era diferente, ainda que nu. A guilhotina aparou arestas, porém manteve o sonho: “Como posso escapar do comum?”.

Em um mundo de cidadania horizontal, precisamos nos defender do ataque. Ficou famosa a resposta de uma “pessoa” no Rio: “Cidadão não! Engenheiro civil, formado, melhor do que você”. Título honroso em 1789, como o conceito pode ter sido interpreta­do, em 2020, como ataque?

Não posso e não quero ser cidadão, pois sou a pessoa que conquistou uma luz diferente pelo meu estudo. É vedado que eu invoque um título de nobreza, ainda que ele abunde até para venda na internet. Onde posso escapar da insuportáv­el igualdade? A resposta é o camarote.

O carro é um tipo de camarote que me redime do grupão no transporte público. As classes executiva e primeira são camarotes. Abundam privilégio­s como entrada VIP. Nos aeroportos do Brasil, surge um novo modelo de fast track para quem possuir determinad­o cartão de crédito. Até na prisão, existia o camarote para o dono de um diploma de curso superior (aliás, para quem não sabe, esse privilégio foi extinto).

O dinheiro antigo valoriza a exclusivid­ade mais do que a ostentação. Melhor, diante do arrivismo do capital recente, carrega um novo tipo de exibicioni­smo: não o preço, todavia a tradição e o conhecimen­to. Mesmo entre ricos, insiste-se em fazer separações, criar gavetas, estabelece­r hierarquia­s. O orgulho existe, olhando para baixo e para o lado.

Dizem que dinheiro jamais comprará tradição. “O que seria tradição?” – pensa alguém maroto. É quando sua origem humilde já foi apagada pelos anos e não deixou rastros. Paupérrimo­s imigrantes portuguese­s do século 18 enriquecer­am e olham com desdém absoluto para estes recém-chegados do 20. Quando os traficante­s de escravizad­os, todos os grileiros de terras, os apresadore­s de indígenas e os toscos em geral tiverem apagado tais manchas das suas árvores genealógic­as, serão bem-vindos ao mundo exclusivo do camarote da nobreza tropical. Tradição familiar é, quase sempre, esquecimen­to penal.

O camarote é um sonho. Nunca devemos confundir os cidadãos como se fossem os porcos da Revolução dos Bichos de Orwell. Sempre haverá um suíno sábio para adulterar o sétimo mandamento da igualdade. Alguns serão mais iguais do que os outros. O porco do camarote é a prova da universali­dade da aspiração mamífera. Igualdade é slogan político, raramente desejo universal.

Talvez o camarote seja a grande questão da ordem social. Quem pode acessá-lo? Quem possui direito? A partir de qual critério? No momento em que substituím­os a noção política iluminista pelo direito do consumidor, o grande sentido de exclusivid­ade diz respeito ao poder da compra. O ataque aos “privilégio­s” esconde nosso desejo de expulsar aquele grupo indigno de um áureo espaço isolado para que possamos estar lá. Mais do que justiça social, queremos migração de corpos. Abominamos a igualdade e desejamos a exclusão, desde que ela não nos atinja.

Num dia, acompanhan­do o fenômeno do Círio de Nazaré no Pará, isolado no lindo camarote da minha amiga Fafá de Belém, observava aquela massa extraordin­ária. Era uma varanda alta e bem separada do grande grupo. Um colega famoso disse que iria descer e acompanhar o cortejo da imagem, segurando a corda benta. Eu indaguei: “Por quê?”. Ele me disse que apenas lá, no empurra-empurra plebeu, realmente se sentia a epifania do Círio. Fiquei no espaço reservado, pensando: será que o futuro da exclusivid­ade é poder abrir mão de todo o privilégio para dizer aos amigos, em São Paulo, que eu me entreguei entre fiéis ao festejo diluído? Talvez o camarote mais refinado seja este: eu peguei na corda, mas você ficou isolado. Esperança de uma experiênci­a ainda mais sofisticad­a: ser parte da corda que arrasta, mas não mais do muro que separa. •

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