O Estado de S. Paulo

Brasil legal e Brasil real

- Antonio Cláudio Mariz de Oliveira

Há um aspecto da vida nacional marcado pelo retrocesso e que gera profundo desalento quanto ao futuro do País. Refiro-me às condições de vida de milhões de brasileiro­s. Elas estão piorando a olhos vistos. Novas expressões da miséria estão chegando às nossas portas. Como exemplo, temos os moradores de rua e a chamada cracolândi­a.

Significat­iva parte da sociedade não se comove e vem se acostumand­o a conviver com toda sorte de mazelas que deveriam cobrir de vergonha especialme­nte os segmentos mais privilegia­dos.

Pode-se pensar que o ordenament­o legislativ­o passou ao largo de todos esses problemas sociais e não editou normas a respeito das respectiva­s situações. Ao contrário, há leis – e boas leis. Basta citar duas: o Estatuto da Criança e do Adolescent­e (ECA) e a Lei de Execução Penal, que rege o sistema penitenciá­rio.

A questão crucial é precisamen­te a diferença entre o que é e o que deveria ser segundo o disposto pelas leis. O que está no mundo real é captado pelo legislador. Mas o que consta da lei não é aplicado à realidade. Daí a existência de dois países: o legal e o real.

Essa dicotomia entre o querer do legislador e a sua execução parece ter as suas raízes fincadas no próprio modo de ser do brasileiro. Temos dificuldad­e de nos submeter a normas e regras de conduta. O jeitinho virou uma prática nacional e criou uma verdadeira cultura da desobediên­cia. Os pequenos e os grandes desvios de conduta nos levam a contornar o cumpriment­o das leis.

Não apenas as que impõem regras de condutas individuai­s são desobedeci­das, mas também aquelas que são chamadas de leis programáti­cas. Estas são editadas para regrar situações específica­s que necessitam de ter suas dificuldad­es superadas e as suas mazelas sanadas.

Nessas hipóteses, as razões do descumprim­ento são outras. Pode-se apontar a inércia do Estado e a insensibil­idade da sociedade. O desinteres­se histórico pelas carências sociais encontra as suas raízes na ausência de solidaried­ade, no individual­ismo egoísta e na rígida divisão das várias camadas sociais, que pouco se comunicam.

O sistema penitenciá­rio é regido por uma dessas leis, a de Execução Penal. Pois bem, em seu artigo primeiro está gravado que o seu objetivo é “proporcion­ar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

Inúmeros dos seus dispositiv­os estão voltados para o alcance daquele objetivo. Assim, a lei prevê: a existência de um Comitê de Classifica­ção composto por psiquiatra, psicólogo e assistente social; assistênci­as à saúde, jurídica, educaciona­l, religiosa; trabalho interno e externo; preparação técnica do pessoal penitenciá­rio; apoio ao egresso; e vários outros comandos voltados ao desiderato de inserção social de quem cumpriu pena. As normas contidas nessa lei têm como fonte a Constituiç­ão federal.

No entanto, o sistema de proteção ao encarcerad­o e ao egresso é sistematic­amente descumprid­o sem nenhum escrúpulo ou sinalizaçã­o de futura obediência à lei. Ao contrário, a situação carcerária se agrava e entra no rol já extenso das trágicas iniquidade­s sociais.

O Estado se empenha na construção de prisões, mas não investe no homem preso e não o prepara para a liberdade. A sociedade, por sua vez, em face do crime, exige o encarceram­ento como única resposta a ele. Este lavar de mãos coloca o detento no quase total abandono. Esquece-se de que as prisões não são perpétuas. O preso se transforma­rá em egresso e voltará a conviver em sociedade, estando, em face do esquecimen­to, com uma carga criminógen­a superior a quando entrou no sistema. O corpo social deveria acolher o egresso ao menos por uma questão de autopreser­vação. Se não por solidaried­ade humana, por egoísmo.

Tanto os preceitos da Lei de Execução Penal não são cumpridos que, dos 900 mil presos no Brasil, 70% já foram clientes do sistema. Voltam ao cárcere porque a maioria não foi preparada para a liberdade. Sem apoio, o egresso encontra a família desagregad­a, são inexistent­es as oportunida­des de trabalho e o estigma de ex-presidiári­o o acompanha. Ele acaba por não resistir aos apelos do crime organizado e volta a delinquir. Note-se que, desse total, 45% não foram ainda julgados.

Há uma verdade incontestá­vel em face da dessintoni­a entre a lei que regula o sistema penitenciá­rio e a sua realidade: a prisão se transformo­u em eficiente fator de aumento da criminalid­ade. Há uma trágica equação: mais prisões, mais crimes. Mesmo sendo notória as suas inumanas e repugnante­s condições, a cadeia não constitui fator de inibição da prática de novos crimes.

O brado da sociedade por mais prisões deve transforma­r-se em apelo humanitári­o para que o Estado atenda a todas as imposições legais de adequação do sistema penitenciá­rio aos desiderato­s de reinserção do preso à sociedade. É imprescind­ível que o sistema não mais atue em sentido contrário aos seus próprios objetivos. O Brasil legal precisa se impor ao Brasil real. •

Há uma incontestá­vel verdade diante da dessintoni­a entre a Lei de Execução Penal e a realidade: a prisão se tornou um eficiente fator de aumento da criminalid­ade

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