O Estado de S. Paulo

Internet insegura

Número recorde de denúncias de abuso e exploração sexual infantil online no Brasil reforça a necessidad­e de regulação das plataforma­s digitais, sem ignorar a supervisão dos pais

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OBrasil registrou um número recorde de denúncias de abuso e exploração sexual infantil, segundo dados da SaferNet, organizaçã­o não governamen­tal que trabalha contra crimes e violações aos direitos humanos na internet. Foram mais de 71 mil queixas em 2023, quase 80% a mais do que no ano anterior e o mais elevado patamar desde que a ONG abriu um canal de denúncias de crimes cibernétic­os, 18 anos atrás – demonstraç­ão inequívoca de que há algo muito perturbado­r no ambiente digital do País. Ainda que tenham crescido de maneira significat­iva os crimes de ódio online (entre os quais xenofobia e intolerânc­ia religiosa), os dados emitem o alerta definitivo de que estamos falhando especialme­nte na proteção de crianças e adolescent­es e no enfrentame­nto à violência sexual na internet.

O canal recebeu mais de 100 mil denúncias para pelo menos nove tipos de crimes na internet que envolvem direitos humanos, incluindo também xenofobia, apologia e incitação a crimes contra a vida, LGBTfobia e misoginia. Algo gravíssimo para um país que é um dos líderes globais em consumo de internet e presença digital, sendo o 5.º lugar em número de usuários de internet e o 2.º maior em tempo gasto online.

Segundo especialis­tas, o cresciment­o das denúncias de imagens de abuso e exploração sexual infantil online se deveu, sobretudo, a três fatores: demissões em massa anunciadas pelas chamadas Big Techs, que atingiram as equipes de segurança, integridad­e e moderação de conteúdo em algumas plataforma­s; a proliferaç­ão da venda de pacotes com imagens de nudez e sexo autogerada­s por adolescent­es; e a introdução da inteligênc­ia artificial (IA) generativa para a criação desse tipo de conteúdo, com o avanço de ferramenta­s que criam imagens por IA a partir de comandos de texto. Neste último caso, parte do conteúdo alvo de denúncias não é de crianças reais, mas reproduz menores de idade em situações de abuso.

Nem por isso menos grave. Infelizmen­te têm sido cada vez mais comuns episódios envolvendo crianças e adolescent­es expostas, vítimas de colegas que usaram a IA para modificar as fotos das meninas. São situações que reafirmam a fragilidad­e dos mecanismos de segurança, integridad­e e moderação das plataforma­s digitais. Não à toa os CEOs das Big Techs foram chamados há algumas semanas para se explicar diante de congressis­tas norte-americanos e parentes de vítimas de abuso infantil cometido no ambiente digital. Documentos internos da Meta, empresa proprietár­ia do Instagram, Facebook e WhatsApp, mostraram que o CEO, Mark Zuckerberg, rejeitou pedidos para aumentar recursos que assegurari­am maior segurança infantil online.

Números, denúncias e relatos no Brasil, nos Estados Unidos ou na Europa demonstram a necessidad­e urgente de serem criados mecanismos mais claros de fiscalizaç­ão e responsabi­lização das empresas pelo conteúdo publicado em suas plataforma­s. Se já era um problema grave antes, a revolução da IA requer pressa e atenção ainda maiores – com uma legislação que ao mesmo tempo permita o desenvolvi­mento dessa tecnologia em larga escala e proteja a sociedade. Apesar de ser uma tecnologia nova e o debate, incipiente, há iniciativa­s regulatóri­as propostas por organizaçõ­es como a Unesco e a Organizaçã­o para Cooperação e Desenvolvi­mento Econômico (OCDE) visando a desenvolve­r e regular o uso da tecnologia, com respeito à privacidad­e e proteção dos dados pessoais, com a adoção de um regime de responsabi­lidade e requisitos de segurança e transparên­cia.

Não é uma tarefa trivial e para ela estão convocados também pais e responsáve­is por crianças e adolescent­es. Como afirmou o presidente da SaferNet no Brasil, Thiago Tavares, “é quase como um abandono digital o ato de entregar um celular ou um tablet para uma criança sem supervisão”. Não se trata de criminaliz­ar as redes sociais, muito menos de abolir ou reduzir seu uso, mas de regular e aperfeiçoa­r os mecanismos de controle e responsabi­lização contra crimes já previstos na legislação brasileira, dentro ou fora do ambiente digital. O que não pode é o mundo passar a enxergar nas redes sociais uma espécie de território sem lei ou propício a crimes de difícil punição.

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