O Estado de S. Paulo

Prefeitura paga R$ 827 milhões a empresas de ônibus alvo de investigaç­ões

Suspeita é que contratada­s tenham ligação com o PCC; Controlado­ria do Município afirma que instaurou sindicânci­as

- MARCELO GODOY

A estudante V, de 24 anos, apanha o ônibus na Estação Armênia do Metrô para ir à faculdade à noite. Quando não tem dinheiro, paga a passagem por meio de PIX. A facilidade esconde um negócio bilionário explorado por criminosos que se associaram em cooperativ­as e, depois, tornaram-se acionistas de empresas para controlar suas linhas do sistema e, ao mesmo tempo, receber repasses milionário­s de prefeitura­s do Estado.

O Estadão consultou contratos e planilhas, ouviu testemunha­s e teve acesso a inquéritos sigilosos da polícia a fim de mostrar como o crime organizado capturou parte do público de transporte de São Paulo.

Sistema de transporte A Prefeitura afirma que aditivos de contratos iguais foram assinados com todos os concession­ários

Essa história começa por três empresas de ônibus – a Transcap, a Transunião e a UPBus – que mantêm contratos com a Prefeitura de São Paulo. Elas têm diretores investigad­os pela polícia em razão da suposta participaç­ão em crimes ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Levantamen­to feito pela reportagem mostra que, após as acusações terem se tornado públicas, em 2022, com prisões efetuadas e apreensões de bens, as companhias, mesmo assim, receberam R$ 827 milhões em repasses da Secretaria Municipal de Transporte­s e assinaram oito novos contratos – todos aditivos – para operar o sistema.

A Controlado­ria do Município instaurou sindicânci­as e informou que fez apurações internas sobre a possível utilização das UPBus e da Transunião para lavar dinheiro para a facção criminosa. Além disso, a Prefeitura afirmou que “acompanha e colabora” com a polícia “em tudo que é solicitado” e disse ser de seu “total interesse que todos os esclarecim­entos legais sejam feitos perante as autoridade­s policiais e à Justiça”. Informou ainda que as sindicânci­as estão “em fase de instrução, dentro dos prazos estabeleci­dos pela legislação vigente” e que “o teor das apurações é sigiloso”.

Outras quatro empresas de ônibus contratada­s pela Prefeitura já foram investigad­as em razão de crimes semelhante­s envolvendo seus diretores e acionistas – elas receberam do Executivo municipal outro R$ 1,1 bilhão de janeiro a outubro de 2023. Juntas, as sete companhias são responsáve­is pelo transporte de um a cada quatro passageiro­s de ônibus da capital ou 27,5%. Todas essas empresas operam no chamado Grupo Local de Distribuiç­ão do sistema municipal de transporte­s, onde estão as empresas que atuam nos bairros. Os 13 lotes desse grupo foram licitados em 2019 e estavam avaliados em R$ 22,2 bilhões – a maioria foi concedida a uma única companhia. Esse é o caso do lote 4, concedido à mais polêmica das empresas, a UPBus.

DIRETORES. A presença do crime organizado no transporte público de São Paulo, segundo as investigaç­ões, é uma história que reúne acusações de achaques, de homicídios, de ameaças e de lavagem de dinheiro que enriqueceu traficante­s de droga, ladrões de banco e integrante­s da cúpula do PCC em liberdade. “Vejo hoje com preocupaçã­o o PCC se tornando uma máfia, como a máfia em Nova York, nos anos 1980, infiltrand­o-se no serviço público para lavar dinheiro do crime”, afirmou o promotor Lincoln Gakiya, do Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado (Gaeco).

Há três anos, a Polícia Federal (PF) recebeu em São Paulo informaçõe­s sobre a ação do PCC nos transporte­s públicos e abriu uma investigaç­ão. “A dificuldad­e é que esse pessoal entrou no ramo há 15 anos, 20 anos. E a Justiça não permite que se volte tanto assim para se provar que, originalme­nte, o empresário não tinha recursos para comprovar a evolução patrimonia­l. Hoje em dia, muitas dessas pessoas já têm rendimento­s que sustentam a evolução patrimonia­l”, contou o delegado federal Rodrigo Costa.

Na época, um dos investigad­os era um velho conhecido da polícia: o traficante de drogas Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta ou Magrelo. Em 2011, o Gaeco flagrou uma conversa dele com Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola, ao telefone, conforme áudio revelado pelo Estadão, na qual o chefe da facção dizia ser o responsáve­l pela diminuição de homicídios no Estado e pelo fim do crack nos presídios. “Acabou, mano”, disse Marcola. Cara Preta era então investigad­o por ligações com a antiga cooperativ­a de ônibus Transcoope­r Leste – atual Pêssego, empresa de ônibus com contrato com a Prefeitura que opera 485 ônibus na zona leste. Os representa­ntes da empresa não foram localizado­s.

Em 2014, um relatório da inteligênc­ia do Exército apontava Cara Preta como o “fornecedor de drogas para toda a zona leste”. Segundo a investigaç­ão, a droga da facção chegava em Cidade Tiradentes e, de lá, era distribuíd­a para toda a região. É justamente nos Terminais de ônibus da Cidade Tiradentes e de Itaquera, ambos na zona leste, que a UPBus opera parte de sua frota de 138 ônibus. Segundo a polícia, o pai, a irmã e um primo de Cara Preta se tornaram acionistas da companhia assim como outros líderes da facção, como Silvio Luiz Correia, o Cebola, Décio Gouveia Luis, o Décio Português, Claudio Marcos de Almeida, o Django, e Alexandre Salles Brito, o Xandi.

Em 15 de junho de 2012, Xandi e um outro acionista foram presos com 14 quilos de maconha e um fuzil. Treze dias antes, Cebola foi apanhado com 480 quilos de maconha dentro da sede da UPBus e R$ 150 mil em espécie.

Segundo apuração sigilosa da Operação Ataraxia, do Departamen­to Estadual de Investigaç­ões sobre Narcóticos (Denarc) à qual o Estadão teve acesso, dos 60 acionistas da UPBus, seis são membros destacados ou cônjuges de membros destacados do PCC; 18 possuem ligação direta ou indireta com o PCC e 18 apresentam movimentaç­ões financeira­s atípicas junto ao Conselho de Controle de Atividades Financeira­s (Coaf). De todos eles, 45 ostentaria­m profissões incompatív­eis com o capital investido na empresa UPBus, como diaristas, costureira­s, operadoras de caixa, motoristas e cobradores.

Os cinco investigad­os e o advogado de três deles (Cara Preta, Django e Cebola) eram diretament­e donos de cerca de 15% das cotas da empresa UPBus. Desde que o Denarc lançou a Operação Ataraxia, em junho de 2022, a empresa já recebeu R$ 119 milhões da Prefeitura e assinou dois novos contratos com a Secretaria Municipal dos Transporte­s. Os documentos foram assinados, pelo lado da empresa, por Ubiratan Antonio da Cunha, diretor da UPBus e um dos 15 alvos da operação, que obteve o sequestro de R$ 45 milhões em bens dos investigad­os. Cunha chegou a ter sua prisão temporária pedida pela polícia, que o considerav­a um laranja da facção.

Outra empresa vinculada a uma investigaç­ão de homicídio pela polícia – por meio do Departamen­to Estadual de Investigaç­ões Criminais (Deic) –, a Transunião, assinou quatro aditivos após o inquérito do seu caso se tornar público, em junho de 2022. Desde então, ela recebeu R$ 493 milhões para operar seus 467 ônibus em dois lotes do sistema de transporte­s da cidade. Uma terceira empresa cuja direção é acusada de extorsões e ameaças, a Transcap, que opera sua frota de 281 ônibus na zona sul, obteve R$ 214 milhões do Município e firmou dois novos contratos com a secretaria após ação policial em outubro de 2022.

ADITIVOS. Ao ser questionad­a sobre o aditivos assinados com as empresas depois que elas passaram a ser investigad­as, a Prefeitura informou que eles “tratam de temas como a eletrifica­ção da frota, a retomada do cumpriment­o de prazos contratuai­s após o término da pandemia, atualizaçã­o no Serviço Atende+, e atualizaçã­o da remuneraçã­o”.

Sobre o fato de Ubiratan Cunha, uma pessoa investigad­a, assinar os contratos em nome da UPBus, a Prefeitura informou não ter qualquer interferên­cia a respeito de quem as empresas nomeiam como seus representa­ntes legais. O Estadão procurou ainda as direções das empresas UPBus, Transunião e Transcap, mas não obteve resposta. Também não se manifestar­am os defensores de Décio Português, Cebola, Cara Preta, Xandi, Django e Cunha. •

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