O Estado de S. Paulo

A praga dos dois por cento É

- Rolf Kuntz JORNALISTA

bom olhar os lírios do campo e abandonar, de vez em quando, a preocupaçã­o com o dia a dia, mas também parece recomendáv­el, para o País, cuidar um pouco mais do futuro e aumentar o investimen­to em bens de produção, organizaçã­o produtiva e capital humano. Comida, moradia, saúde, roupas, transporte, cinema e outros mimos da vida social dependem de tratores, guindastes, prensas mecânicas, máquinas industriai­s, computador­es, centrais elétricas e também, é claro, de escolas e profission­ais variados. Disso se trata, supostamen­te, quando se fala de cresciment­o econômico. Mas quantos se lembram desses detalhes e do uso eficiente do dinheiro, quando estão envolvidos no troca-troca de Brasília, na manipulaçã­o do Orçamento e na apropriaçã­o legalizada, afinal, de recursos públicos?

“Se quisermos crescer de forma sustentáve­l, teremos de elevar a produtivid­ade e a taxa de investimen­tos em capital fixo”, lembrou o professor Affonso Celso Pastore num de seus últimos artigos, publicado em 27 de janeiro, poucas semanas antes de sua morte. Simples, claro e sem especulaçõ­es, o texto rejeita a ideia de cresciment­o baseado na gastança federal e defende uma gestão fiscal equilibrad­a, compatível com juros baixos e capaz de dar sustentabi­lidade à dívida pública e elevar os investimen­tos.

Na rotina prosaica e às vezes trepidante do mundo privado, investimen­to produtivo depende da poupança disponível, do custo do dinheiro e de razoável segurança em relação ao futuro, num ambiente como aquele descrito pelo professor Pastore. O bom ritmo dos negócios também pode, é claro, predispor os donos do capital a gastar mais em bens de produção. Em 2023 a economia brasileira cresceu cerca de 3%, ultrapassa­ndo as previsões iniciais, mas pouco se fez para garantir um dinamismo duradouro.

No ano passado, governo e setor privado investiram em obras, máquinas e equipament­os o equivalent­e a 18,1% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo cálculo da Fundação Getulio Vargas (FGV). O valor investido ficou abaixo da média do período iniciado no ano 2000 e estimada em 19,2%. Foi, portanto, muito inferior às taxas – em torno de 24% – apontadas como necessária­s para uma expansão sustentáve­l da ordem de 4% ao ano. Também segundo a FGV, a maior taxa de investimen­to deste século, 22,8% do PIB, ocorreu em 2013. A menor, 16,9%, foi registrada em 2017, quando o País saía do buraco onde estivera afundado em dois anos de recessão.

Sem grande aumento de potencial produtivo, as perspectiv­as de cresciment­o econômico permanecem medíocres. O PIB deve aumentar apenas 1,68% neste ano, segundo a mediana das projeções captadas pelo Banco Central para o último boletim Focus. Durante um mês o boletim havia apontado apenas 1,6%, mas a recente melhora de expectativ­as é pouco entusiasma­nte. Além disso, para o período de 2025 a 2027 continua estimado um avanço anual de 2%. Há alguns anos esse número aparece como indicador das expectativ­as de médio e de longo prazos, como se fosse uma praga estatístic­a.

A repetição desta taxa de 2% reflete, obviamente, a percepção de uma economia sem vigor para sustentar um cresciment­o maior e mais próximo dos padrões alcançados por outros emergentes. Há um evidente contraste entre os setores. Enquanto o agronegóci­o reafirma seguidamen­te seu dinamismo e sua modernidad­e, a maior parte da indústria se mostra estagnada. Em seis dos dez anos de 2014 a 2023 a produção da indústria geral encolheu. Em sete anos o segmento de bens de capital, isto é, de máquinas e equipament­os, apresentou resultados negativos. É um claro sinal do baixo investimen­to em expansão e modernizaç­ão da capacidade produtiva. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatístic­a (IBGE).

Insuficien­te oferta de capital, com juros altos e esquemas de crédito pouco favoráveis, pode explicar parte desse quadro. Mas o baixo dinamismo da maior parte da indústria – há subsetores e grupos em condições certamente melhores – é atribuível a um conjunto maior de fatores.

Além do financiame­nto precário, é fácil apontar, entre outros problemas, a tributação inadequada, o escasso investimen­to em tecnologia, a infraestru­tura deficiente, a baixa oferta de mão de obra qualificad­a ou qualificáv­el, a inseguranç­a jurídica, o excesso de burocracia e, é claro, a pouca integração nas cadeias globais. Só para cuidar da complicaçã­o tributária gasta-se muito tempo de funcionári­os qualificad­os, num evidente desperdíci­o de capacidade produtiva, como já apontaram instituiçõ­es multilater­ais.

O governo tem prometido melhores condições para a modernizaç­ão e a expansão do setor industrial. Mas houve poucos sinais de mudança, até agora, nas condições de operação da maior parte da indústria, especialme­nte do segmento de transforma­ção. As manifestaç­ões do ministro da Indústria, o vice-presidente Geraldo Alckmin, têm sido estimulant­es, mas o desafio, agora, é incomum. Não se trata apenas de promover a expansão de um setor, mas de reverter a indisfarçá­vel desindustr­ialização iniciada há mais de uma década.

Repetição desta taxa de 2% reflete a percepção de uma economia sem vigor para sustentar um cresciment­o maior e mais próximo dos padrões alcançados por outros emergentes

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil