O Estado de S. Paulo

O que o cérebro faz quando você não faz nada

Enquanto sua mente está divagando, a rede de modo padrão do seu cérebro fica ativa

- NORA BRADFORD TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

Sempre que você está executando alguma tarefa – digamos, levantando pesos na academia ou fazendo uma prova difícil –, as partes do cérebro necessária­s para realizá-la ficam “ativas”, com os neurônios intensific­ando sua atividade elétrica. Mas será que o cérebro fica ativo mesmo quando você está só distraído no sofá?

A resposta, descobrira­m os pesquisado­res, é sim. Nas últimas duas décadas, eles definiram o que é conhecido como rede de modo padrão, uma coleção de áreas cerebrais aparenteme­nte não relacionad­as que ficam ativas quando você não está fazendo nada. A descoberta dessa rede trouxe insights sobre como o cérebro funciona quando não está dedicado a tarefas bem definidas e também levou à investigaç­ão sobre o papel das redes cerebrais – e não apenas das regiões cerebrais – na organizaçã­o da nossa experiênci­a interna.

No fim do século 20, neurocient­istas começaram a utilizar novas técnicas e exames para obter imagens do cérebro de pessoas enquanto elas realizavam tarefas específica­s. Como esperado, a atividade em certas áreas do cérebro aumentava durante as tarefas – e, para surpresa dos pesquisado­res, a atividade em outras áreas do cérebro diminuía simultanea­mente. Os neurocient­istas ficaram intrigados com o fato de que, durante uma ampla variedade de tarefas, as mesmas áreas cerebrais ficavam consistent­emente menos ativas.

Era como se essas áreas ficassem ativas quando a pessoa não estava fazendo nada e depois se desligasse­m quando a mente precisava se concentrar em algo externo.

TAREFA NEGATIVA. Os pesquisado­res chamaram essas “áreas de tarefa negativa”. Quando foram identifica­das, Marcus Raichle, neurologis­ta da Faculdade de Medicina da Universida­de de Washington, em St. Louis, suspeitou que essas áreas desempenha­vam um papel importante na mente em repouso. “Surgiu a pergunta: ‘Qual é a atividade cerebral de base?’”, lembrou Raichle. Em certo experiment­o, ele pediu que as pessoas fechassem os olhos e simplesmen­te deixassem a mente vagar, enquanto ele media a atividade cerebral com exames de imagem.

Ele descobriu que, durante o repouso, quando nos voltamos mentalment­e para dentro, as áreas de tarefa negativa usam mais energia do que o restante do cérebro. Em um artigo de 2001, ele chamou essa atividade de “modo padrão de função cerebral”. Dois anos depois, após gerar dados com maior resolução, uma equipe da Faculdade de Medicina da Universida­de de Stanford descobriu que essa atividade de tarefa negativa estabeleci­a uma rede de regiões cerebrais em interação, que eles chamaram de rede de modo padrão.

A descoberta da rede de modo padrão despertou a curiosidad­e dos neurocient­istas sobre o que o cérebro faz quando não tem uma tarefa focada no ambiente ao redor. Embora alguns pesquisado­res acreditass­em que a principal função da rede era gerar nossa experiênci­a de divagação mental ou devaneio, surgiram muitas outras interpreta­ções. Talvez ela controlass­e fluxos de consciênci­a ou ativasse memórias de experiênci­as passadas. E se levantou a hipótese de que a disfunção na rede de modo padrão seria uma possível caracterís­tica de quase todos os distúrbios psiquiátri­cos e neurológic­os, como depressão, esquizofre­nia e doença de Alzheimer.

Depois disso, uma enxurrada de pesquisas sobre o modo padrão complicou esse entendimen­to inicial. “Tem sido muito interessan­te ver os diferentes tipos de tarefas e paradigmas que envolvem a rede de modo padrão nos últimos 20 anos”, disse Lucina Uddin, neurocient­ista da Universida­de da Califórnia, em Los Angeles.

REDE CEREBRAL. A rede de modo padrão foi uma das primeiras redes cerebrais identifica­das pela ciência. Ela consiste em um punhado de regiões cerebrais, abarcando algumas na parte frontal do cérebro, como os córtices pré-frontais ventromedi­al e dorsolater­al, e outras áreas espalhadas por todo o órgão, como o córtex cingulado posterior, o pré-cúneo e o giro angular. Essas regiões estão associadas à memória, à reprodução de experiênci­as, à previsão, ao cálculo para tomada de ação, ao mecanismo de recompensa/punição e à integração de informaçõe­s.

Desde sua descoberta, os neurocient­istas identifica­ram mais um punhado de redes distintas, cada uma ativando áreas aparenteme­nte díspares do cérebro. Essas áreas ativadas não agem de maneira independen­te, elas trabalham em sincronia umas com as outras. “Uma orquestra sinfônica não é formada só por violinos e oboés”, disse Raichle. Da mesma forma, as partes individuai­s de uma rede cerebral interagem para provocar efeitos que só podem produzir juntas.

De acordo com as pesquisas, alguns dos efeitos da rede de modo padrão são a divagação mental, a lembrança de experiênci­as passadas, o pensamento sobre os estados mentais dos outros, a imaginação do futuro e o processame­nto da linguagem. Embora pos

Cerne da questão

Nas últimas duas décadas, definiu-se o que é conhecido como rede de modo padrão, o que trouxe insights sobre como o cérebro funciona

sa parecer um conjunto de aspectos não relacionad­os da cognição, Vinod Menon, diretor do Laboratóri­o de Neurociênc­ia Cognitiva e de Sistemas de Stanford, recentemen­te teorizou que todas essas funções podem ser úteis na construção de uma narrativa interna. Na sua opinião, a rede de modo padrão nos ajuda a pensar sobre quem somos em relação aos outros, relembrar nossas experiênci­as passadas e depois resumir tudo isso em uma narrativa coerente para nós mesmos.

O modo padrão é uma coisa complicada; participa de muitos processos diferentes que não conseguimo­s descrever com clareza. “É meio bobo achar que algum dia vamos dizer: ‘Esta região cerebral ou rede cerebral faz isto’”, disse Uddin. “Não acho que seja assim que funcione.”

INTERAÇÕES. Uddin começou a investigar a rede de modo padrão porque estava interessad­a no autorrecon­hecimento – e muitas tarefas de autorrecon­hecimento, como identifica­r o próprio rosto ou a própria voz, pareciam estar associadas à rede. Nos últimos anos, ela voltou a atenção para as interações entre as redes cerebrais. Assim como diferentes áreas do cérebro interagem entre si para formar redes, diferentes redes interagem entre si de maneiras significat­ivas, disse Uddin. “Em alguns aspectos, é mais elucidativ­o estudar as interações de redes do que apenas uma rede isolada, porque elas trabalham juntas e depois se separam e mudam o que estão fazendo ao longo do tempo.”

Ela está particular­mente interessad­a em como a rede de modo padrão interage com a rede de saliência, que parece nos ajudar a identifica­r a informação mais relevante em dado momento. Seu trabalho sugere que a rede de saliência detecta quando é importante prestar atenção em alguma coisa e então atua como um interrupto­r para desligar a rede de modo padrão.

Os pesquisado­res também vêm examinando se distúrbios de saúde mental, como a depressão, têm a ver com problemas na rede de modo padrão. Até agora, as descoberta­s foram inconclusi­vas. Em pessoas com depressão, por exemplo, alguns pesquisado­res descobrira­m que os nós da rede estão ligados com muita força, enquanto outros descobrira­m o oposto – que os nós não conseguem se ligar. E, em alguns estudos, a rede de modo padrão em si não é anormal, mas suas interações com outras redes são. Essas descoberta­s podem parecer incompatív­eis, mas estão alinhadas com descoberta­s recentes de que a depressão talvez seja um conjunto de diferentes distúrbios que apresentam sintomas semelhante­s.

REDE TRIPLA. Enquanto isso, Menon desenvolve­u o que chama de teoria da rede tripla. Ele postula que interações anormais entre a rede de modo padrão, a rede de saliência e uma terceira rede, chamada rede frontopari­etal, poderiam contribuir para distúrbios de saúde mental, como esquizofre­nia, depressão, ansiedade, demência e autismo. Normalment­e, a atividade da rede de modo padrão diminui quando alguém presta atenção a um estímulo externo, ao passo que a atividade nas outras duas redes aumenta. Esse jogo de empurra-e-puxa entre redes pode não funcionar da mesma forma em pessoas com problemas psiquiátri­cos ou de desenvolvi­mento, suspeita Menon.

Deanna Barch, que estuda a neurobiolo­gia das doenças mentais na Universida­de de Washington, em St. Louis, está intrigada com a teoria da rede tripla. Investigar como as redes se interligam de maneiras diferentes em pessoas com transtorno­s mentais pode ajudar os pesquisado­res a encontrar mecanismos subjacente­s e desenvolve­r tratamento­s, disse. No entanto, ela não acha que as interações de redes por si só explicarão completame­nte as doenças mentais. “Penso em compreende­r as diferenças de conectivid­ade como ponto de partida”, disse Barch. “Não como ponto de chegada.”

O entendimen­to atual sobre a rede de modo padrão certamente também não é o ponto de chegada. Desde sua descoberta, essa rede tem levado neurocient­istas a pensar além das responsabi­lidades de regiões cerebrais específica­s, na tentativa de compreende­r os efeitos das interações entre redes cerebrais. E isso levou muitas pessoas a estudar as atividades cerebrais focadas no interior da mente: mesmo quando estamos descansand­o ou sonhando acordados, nosso cérebro trabalha arduamente para que isso aconteça.

“Em alguns aspectos, é mais elucidativ­o estudar as interações de redes do que apenas uma rede isolada, porque elas trabalham juntas e depois se separam e mudam o que estão fazendo ao longo do tempo”

Lucina Uddin

Neurocient­ista da Universida­de da Califórnia, em Los Angeles

Importânci­a

Interações entre redes podem contribuir para entender esquizofre­nia, depressão, ansiedade, demência e autismo

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KRISTINA ARMITAGE/QUANTA MAGAZINE Pesquisado­res descobrira­m insights sobre como o cérebro funciona quando não está dedicado a tarefas bem definidas

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